CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

sua vinda de Paris, em lugar de aproximá-los, não imporia mais distâncias, léguas a mais, entre ambos? Porém este Harry está falando coisas, não está rindo dela, não, só lhe segreda doçuras: "Está certo, amor, está certo, quer ir embora, cansou deste passeio, quer ir a outro lugar, vamos, afinal, se a trouxe, lhe peço perdão, pensei que lhe agradasse, não gostou, não faz mal", em sua cabeça dava voltas, vou mostrar-lhe o quê? Olha o relógio, meia-noite e meia, ela vai querer regressar ao hotel, impedi-la, seja a que preço for, não, este passeio não pode ser um fracasso, que é isso, meu velho Harry, estás virando o quê, o casamento te roeu a fibra? Essa que já pensavas segura, te escapa assim? De bonito, de notável, o que há nela , os olhos, falam sozinhos, e essa coragem de se atirar de Paris, sem conhecer vivente aqui, essa capacidade de abandonar-se assim, atrás de um homem. Tão fácil fazê-la sair, tua mulher como sempre dócil (agora vem sendo menos, depois do primeiro filho e com a nova gravid-z, já menos condescendente, vai lhe nascendo aos poucos, muito de leve, um ciúme, assim um zelo, era só o que me faltava, a mulher mudar, tornar-se diferente da dos tempos do noivado e dos primeiros anos do casamento, em que os dois tão bem se entendiam). Fácil sair com esta, a noite era nossa, certo não tinha intuito nenhum definido, mas a noite era nossa, agora me vem com melindres, se enche de partes, vá lá entender mulher, essas surpresas. Já vão chegando ao carro, para onde a levarei, para onde? Amanhã estará agarrada ao amante-padre, será tarada?, será que só gosta desses assim, impossíveis, proibidos? Assimilou o moralismo dele, abominou a rua das putas, não conseguiu se deleitar com aquilo, pesar de que, no fundo, fremia de curiosidade, sentiu-lhe o frisson, nisso estavam irmanados os dois, nessa hora éramos da mesma argila tépida, o mesmo mel grosso e quente escorria de um para o outro e nos ligava, uma espécie de puxa-puxa, um momento aquilo nos uniu, boiamos juntos no mar cálido de desejos inconfessáveis - ver a negociação do amor, imaginar o que se passaria por detrás da cortina, e já prelibava o final da noite, sairiam dali, do presenciar daquela cena, mais ligados, mais arrastados um para o outro por aquela força, o exemplo do prazer alheio, a novidade, a noite nova para ele, o iniciador, levando-a pela mão para aquele mundo, ela gostando, vibrando, já os dois na senda cálida 123

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