CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

foi, que deu em você, hein, fala, que foi?" (Angela teve uma vergonha, como se fosse um pouco culpada de a outra estar ali, como dizer-lhe é uma mulher igual a mim, é como se fora eu própria nessa vitrine, não posso, não consigo fazer disso um espetáculo, é um ser humano, não um bicho numa jaula, é gente como nós, como sua mulher, como eu, mas por que dizer-lhe isso?, ele iria talvez rir, julgá-la moralista, ainda mais mascarada, ou supor que encenasse tal reação para valorizar-se a seus olhos). Por isso calou, só disse: "Já vimos muito, já vimos tudo." Porém ele a está mirando de outra sorte, descobrisse nela uma outra face, a contradição, há pouco sentira-a fremir de curiosidade, isso a aproximava tanto dele, essa fome de sensações, sede de um prazer novo, aquilo os ligava, agora se fugia? escapava?, reagia?, moralista, você? Fosse uma assim, do exército das virgens loucas, hein, fosse, não era de rir até perder o fôlego? A maior blague que lhe sucedera, nestes tempos. Uma que vem sozinha de Paris, em busca de um homem, de um padre, um só amigo, ela dizia, mas isso que importa? Só em Paris há mais de um ano, seria daquelas? Era de morrer de rir, meu velho Harry, ele se bate mentalmente no ombro, onde foste cair, hein? Era de estourar, só te faltava essa. Agora ele se foi, ausente de mim, esse homem, rAngela pressente que, pesar do braço passado nos seus ombros, há um canal entre eles, frias águas os separam, decep– cionei-o, já se afasta, já se vai, não era, não seria nunca o amigo-quase-amante que imaginou, mas por que imagi– nou?, por que esperou isso de um que conhecia há vinte e quatro horas? Bem feito, antes estivesse dormindo, ou na saleta, fazendo companhia à barriguda, e de súbito sente-se tão-só, pelo braço do desconhecido, um sonho em que se viaja por lugares estranhos, pessoas estranhas, adversas, distantes de nós em tudo, que solidão à mar– gem desse canal, nesse bairro de mulheres envidraçadas, solidão, pesar do vaivém dos passantes e deste a teu lado, braço no teu ombro, e que agora te aperta, te atrai mais e mais para si, e te fala, que diz ele?, que coisas me diz esse desconhecido? Betsabete, por que não te ouvi?, que vim fazer aqui? Sente-se desalgemada de tudo, só no mundo. Não será isto uma presciência do que se passará amanhã entre ela e Peter? A viagem dele, a sua viagem, 122

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