CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

talvez mesmo esse desejo esteja comigo oculto desde que o vi, tê-lo para mim, a sós, entretanto, é a Peter que amo, mas Peter está longe, forte e perto é Harry com seu belo rosto, seu riso, como seria o amor dele? Saíram, um frio à borda do canal. "Está bem prote– gida?" - ele pergunta, ajeitando-lhe, levantando-lhe, cha– meguento já, a gola do mantô. "Sim, está ótimo, obri– gada." Entram no carro, ele mais sério, mais grave e doce - no escuro não pode ver-lhe os olhos, terão perdido a luz cínica? - está aí o que ela pretendia, inconsciente, nem bem se dá conta disso - ver aquele rosto perder o ar blasé e a luz de cinismo que mora no fundo dos olhos se apagar, se apagar mesmo não, ser substituída por outra, mas que outra? que que estás querendo, tu que vieste a Amsterdam por Peter, que estás querendo com este que aqui vai a teu lado, no volante, um braço nos teus ombros, mas que é isso, M. Harry, ainda bem não saímos, sua mulher estará na janela, pastorando. - Você tem medo de mim? - e já não ri o riso aberto, sorri, apenas, sai fumaça de sua boca, como é frio, nas proximidades do canal, terra mais gelada, também, águas por todos os lados, para cada lado que um se volte, há um rio de tocaia, por isso tua frieza, Peter? Mas um dia cho– raste, um dia não tiveste força para te arrancar ao meu abraço, isto foi o melhor da minha vida, o clarão, mil luzes se acendendo dentro de mim e me cegando, se nos amássemos livremente, não fosses tu um padre, e com esse fervor de missionário, essa alegria, esse clarão, a f eérie in– terior seriam meus para o resto de meus dias, e tudo isso, teu ardor secreto, teu amor, tudo o que de melhor possuis - que só me concedeste àquela hora - tudo será doado ao teu Deus. - Je vous aime - cochicha-lhe o outro - por que tão distraída e longe? Por quê? Estancou o carro ali, antes da esquina, volta-se para ela, segura-lhe o rosto com as duas mãos - por que consinto? Ele está belo, na sombra, ali não há o luzeiro das ruas centrais, poucos revérberos se refletem nas águas do canal e no fundo de seus olhos. Como um rosto gordo e cheio pode exercer sedução, ele vai beijá-la, seus olhos são só doçura, onde a luz cínica, apagou?, esta luz é outra, só de desejo? Vale a troca, vale? Porém ela não vê bem, não vê mais nada, ele, com uma delicadeza que nem era 117

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