CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

nos braços, limpo, cheiroso, arrumadil1ho, no terno bege, o pulôver, o gorro. Também ela o carrega nos braços, beija-o, o pai vai pôr o casaco. "Até logo, minha senhora, pena que não vá conosco" (e se fique aí no borralho com suas batatas). Mas a mulher tem um sorrir digno e cal– mo, então não percebe as manobras do marido? Ou não está ligando, que gente é esta? Já estão no carro, à borda do canal, os três à frente, o menino entre os dois. Saem, ele conduz devagarinho, mostrando-lhe cada coisa, cada ponte, os prédios do século dezoito, a sua cidade. Porém mal deixam o quarteirão, fez isto, logo ao dobrar a primeira esquina, como se não se contivesse e aquilo o estivesse atormentando o tempo todo, o homem, num ímpeto, estaca a máquina, puxa-a para si, e beija-a, não com violência, mas com uma espécie de fervor, esportivo fervor, se é possível. Um beijo só, na face, junto à boca, e logo segura o volante e - isto ela não esquecerá - o menino, de dois aninhos, igual impulso, automaticamente fez a mesma coisa, tomou-lhe o rosto com as duas mãozinhas, e taco!, beijou-a também. Foi uma coisa incrível, tem uma vontade doida de rir, de chorar, o menino! "O senhor é louco? - perguntou em francês - se seu filho vai contar a sua mulher, hein?, vai chegando, vai dizendo "papai fez isto com a moça, assim, hein?, o que acontece?" - Mas não fiz nada, que fiz eu? Tenho culpa de você ser assim tão . . . - agora olha-a bem, está me ana– lisando, vê que bonita não sou - ... tenho culpa desses seus olhos tão vivos, tão ... Acalmou-se, acendia um cha– ruto, dono de si, segurava o volante com tranqüila força, deixe estar minha dona, se abrande, então não sei que não lhe sou repugnante, não estou sentindo que está tam– bém ligeiramente caída por mim? Não era uma gabação, só aquela tranqüilidade simpática, a luzinha cínica no olhar. Chegam à igreja, ele diz "vou passear o nenê aqui no parque ao lado, estarei à sua espera quando acabar, vamos dar uma volta de barco, percorrer os canais", e abalou, o menino pela mão. (Isso eu queria fazer com Peter, o passeio pelo canal.) Mas ele era implacável. Quando foi apanhá-la, já tra– zia os bilhetes, e foram os três, as gentes com certeza pensando que eram uma família, isto lhe dava o direito 109

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