CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

aquilo, o cm1smo quase inocente, cumprindo um ritual (está aqui, minha princesa, sou seu humílimo servidor, quer que lhe dê a comida na boca?). Angela decide-se por um chá com leite. Admira a sua arte em servir o chá, como um francês, o doce de laranja, o mel nas torradas. Volta-se para a esposa silenciosa, mansamente descascando batatas, já tem um ar de estafa, àquela hora matinal. - Não têm criados? - Oh, não, senhorita - ele é quem responde, sua fala é um riso - os criados somos nós. Mira o salão, a casa toda, os móveis impecáveis. Entendeu, também ele trabalha demais, cuida do hotel, do arranjo dos quartos, a mulher na cozinha, no bar, e o menino, o menino que aparece esfregando os olhinhos embaciados de sono, "mami, mami", lindeza de criança, a mãe larga as batatas, toma-o ao colo, tem dois anos, olhos do pai, cabelos escuros dela, pele de flor, a mãe o leva, a lavá-lo, prepará-lo, o marido lhe diz: "Não vou poder passeá-lo esta manhã, devo acom– panhar Mademoiselle à igreja." Angela porém atalha vi– vamente: "Mas não, Madame, o menino pode ir, sim, por que não?" - jamais sozinha com aquele homem, num carro. A mulher consulta o marido, como os olhos deste perdem terreno, vão de uma à outra, o apelo secreto à Angela, "por que, por que você faz isso? Por que não quer lr só comigo?" - mas se rende, no riso que é sua arma e sua defesa, levanta os braços: "As senhoras é quem co– mandam", e faz uma reverência, irônico e cortês, diabo mais charmoso, ela mastiga uma torrada, sorve um gole de chá fervente, os olhos nele. A mãe largou as batatas, vai para o interior da casa com o menino. Angela disfarça, "quero ver o canal, quero ver esta cidade à luz do dia" - abre a janela envidraçada, a rajada de ar fresco inunda a sala, mas que frio, então esse é o verão de vocês? O canal passa em frente à casa, são oito horas, há névoa por sobre a água, diverso de Paris o amanhecer, névoa sobre a água, névoa fria no ar, bonito, com o sol, bonita esta manhã nova, em bruma dourada. Ele se chega: "Agrada-lhe a vista? Não é uma beleza Amsterdam?" "Sim, muito belo." "Quero mostrar-lhe tudo, tudo, mas só nós dois, por que fez aquilo?, por que levar o menino?" Angela o encara espantada (então é louco, sua mulher com semelhante barriga, não pensa nela, será que não a ama, um tico?). Mas o menino o encanta, isto se sente quando ele o toma 108

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