CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

·proferia àquelas coisas com duplo sentido, a voz carregada de intenções tão claras, noutro isso seria intolerável, num vulgar coureur, pois neste assentava, como que fazia parte de sua inteireza. Ainda estará por detrás da porta, escutando o ruido do seu banho, ainda? Não o ouve descer as escadas, mas percebe passos, enquanto está se enxugando e pondo a colônia, passos subindo, estacam, ele pergunta, sempre confidencial, estivesse falando de coisas outras, um se– gredo proibido e só deles: "Mademoiselle quer chá, café ou chocolate? Com bacon, ovos, torradas?" Teve de res– ponder-lhe e fê-lo alto, seu moço, nada desses conciliá– bulos, respondeu até sem nenhum polimento, estivesse em casa e falasse à tia Dadan ou à empregada: "Qualquer coisa está bem - ajuntou: não sou de muito comer de manhã." Mas ele insistia: "Os pães já aqueci, deixei no forno.'' Como Angela nada mais dissesse: "Está ouvindo? Já estão quentinhos, os pães, se quer, frito os ovos e o bacon, vamos sair, demorar, precisa comer bem." "Cachor– ro!" Teve uma vontade de rir, rir muito, e um demônio lhe cochichava: "Abre a porta, abre, assim cheirosa, só o penhoar em cima da pele, abre, só para vê-lo doido, ver-lhe os olhos enverdecerem de desejo, devem ser lindos, será que no desejo, nos prelúdios do amor, guardariam o atraente cinismo? - abre, abre, mas que coisa, que horror, Peter, tu soubesses, meu Deus, como é que são as coisas, chorando por Peter, só por ele viera, e se ele a desprezasse, a tentação não era se deitar, de vez, no fundo de um desses canais? Agora a voz do homem, o tabique de ma– deira separando o desejo dele do dela, abrisse a porta, que aconteceria? Fechou os olhos, reviu o rosto torturado de Peter, meu amor, meu bem, vês como sou? Esquecera Fausto por Peter. Agora, amando Peter com todas as forças, a ponto de a vida nada mais lhe significar sem ele, tentada por esse desconhecido. Era só uma curiosi– ·dade (o mínimo que achava para desculpar-se), saber a reação do outro, se ele a visse de roupão, o colo gotejante, suportaria a ternura cínica de seus olhos? Mas nem Cheng, nem Fausto, ninguém a atraíra, até hoje, a semelhantes abismos, Peter, serás culpado?, atirava-lhe a responsa– bilidade - te esperei tanto, sofri demais por ti, será isso, será? Tenta achar um perdão, uma escusa - deve ser isso, afinal, aquele homem lhe era um estranho, convivera 106

RkJQdWJsaXNoZXIy MjU4NjU0