CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).
cisar de mais alguma coisa, chame, chame por mim, eu venho - e que mundo nesse "eu venho", não era assim um deslavado, era mais, uma exaltação, uma chama o consumisse, independente dela, uma fome de vida, mas não simples mulherengo, algo que ela gostaria de decifrar. Qualquer coisa diversa do chamego dos dominicanos com Laura, da passividade canina e cativa de Cheng, da ter– nura paternal de Fausto, do temeroso e vigilante amor de Peter - este aqui distinto de todos, mas em quê? Dormiu entre esse perguntar e a espera de Peter, a segunda-feira parecia longe, vim só por ele, eu o adoro, mas amanhã ainda será domingo, o homem de olhos cin– zentos vai me levar à igreja, por que isto me perturba?, me perturba mesmo? Era só o que faltava. E se deixou ficar, quase com gosto, presa desse novo medo, quase como na noite do fantasma, mas agora outro, um degrau estalava, ela estremecia, imaginava coisas. Havia alguém do outro lado da porta, haveria? Mas que horror, esse homem, isto não era previsto, e a mulher grávida! Mas o leito do aviador era bom, acabou por adormecer. Dormiu tanto e tão bem que acordou com a panca– dinha na porta do quarto. Deu-lhe um susto, onde estou, que é isto - logo apreendeu tudo, é o homem, o dos olhos cinza-verdes, a missa. Apressou-se em responder, bem alto, espantando o quê? "Sim senhor, estou ouvindo, obrigada, descerei em quinze minutos." Voz dele se fazia sedução, do outro lado: "Dormiu bem?, verdade?" - seu francês era pobre, mas a voz rica e sugestiva, ah, diabo, ah, ser– pente, pois não estava justamente contando que levantara cedinho e nem sequer tomara o seu café, para esperá-la? Cão de homem, o pior é que é tão maneiroso, um manei– roso que, embora cínico (não sabe bem se essa é a palavra, cínico), tal cinismo ia-lhe bem, incrível, enquanto toma a ducha, o pensamento viaja célere a Deurne, "ó bem da minha alma, amanhã estarei me preparando para ir à estação, te buscar, querido meu, mas hoje vou sair é com este gordo de olhos cinza, esse cínico". Curioso, o que em outro seria defeito, nele era atrativo, imaginava, tentava imaginar o rosto nutrido de pele clara, não flá– cida! - imaginá-lo sisudo, grave, ah, não, ele fosse assim, quem o suportaria? Seria um absolutamente destituído de qualquer interesse. Atraente o cinismo nele, não se tinha nenhum ímpeto de dar-lhe uma bofetada, quando 105
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