CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

•. mon coeur, pudesse dizer-lhe estas coisas, seu peito cheio, mas o homem ali, rente ao piano, espera que ela termine o telefonema, sua atitude é de espera, embora discreta), Angela recolocou o fone, aturdida ainda por aquele gole tão forte de alegria, e, como tonta, deixou-se cair numa poltrona. - Venha conhecer minha mulher, Mademoiselle. Surgia lá de dentro uma moça morena, morena como uma brasileira, só mais pálida e os olhos acinzentados, mas não possuíam a luz-meiguice-tentadora dos do marido, assim passiva, bondosa, passiva e grávida, gravidíssima, barrigão por acolá. Ele fazia as apresentações: "A senho– rita vem conhecer Amsterdam, é professora em Paris", baralhava tudo, entendia mal o francês. Quanto à Ângela, seu inglês, seu alemão, mal davam para uma brevíssima ponte. Apertou a mão da moça tão grávida, dir-se-ia que o filho estava por horas, tão cavadas as olheiras, o olhar de um cansaço. Sentou-se, lânguida, numa poltrona ao lado do piano, Ângela perto dela, o homem ainda expli– cava: "Mademoiselle vem visitar um amigo." "Sim, um colega de estudos em Paris, grande amigo." A outra não se mostrava mais indagadora nem mais curiosa, malícia alguma lhe nascia nos olhos cinzentos, seus gestos só tra– duziam uma coisa: "Estou exausta", todo o seu corpo gemia, desmaiando quase. Ângela teve-lhe uma pena. O maridão, ao piano, agora era todo Brasil, buscava lison– jeá-la: "Mademoiselle habita Paris, mas é brasileira", e não é que sabia a Aquarela, e tantas outras, claro que tocava tudo num ritmo seu, quase tango, valsa, sei lá, mas com um calor, uma quentura boa, a sala se animava, os olhos da grávida se adoçavam, fazia-lhe perguntas de pura polidez, sobre os estudos, o que lhe parecera a feérie de Amsterdam? E lhe conta do filhinho, o primeiro, que dor– mia, e tinha dois anos. Mas o holandês se entregava a seu prazer, fechava os olhos, abandonava-se ao seu Schu– bert, Schumann e Chopin, como tocava - aquilo era para ela?, para ele próprio, seu deleite? A mulher mansamente tricotava, na poltrona azul-marinho. Ângela queria dei– tar-se, e ele, implacável: "Mas a noite mal começa, senho– rita não vem de Paris, como pretende dormir tão cedo?" Então não se apercebia da esposa exausta? "Madame est fatiguée" - ele atentou um instante para a mulher - amava-a?, tolerava-a apenas?, como seria a vida deles? - 103

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