O Liberal: jornal da amazônia. Edição n° 22.570. Domingo, 04 de fevereiro de 1990.
OLIBERAL DOIS C/JP€f<(l}O . À margem da vida encontram-se seres, vivos, que escutam o mundo através de janelas da alma. Alto é o preço que se paga ao fim de uma existência. A velhice que, para muitos, representa O castigo da _humanidade, atinge a todos que nao morrem prematuramente. O que os idosos pensam, quase sempre é visto como retrógrado, arcaico, inútil. Um homem, ao morrer escreveu um poema sobre a velhice. Um poeta, Samuel Beckkett, expôs o velho, ao_ tempo, em que expunha o conhec1mento que os anos vividos, ajudam a armazenar. A velhice em sua forma mais cruel, deixada à deriva pela sociedade. Um pouco do que o homem encara no futuro. Um dos maiores problemas para_os idosos no asilo é a íalta de atençao; os próprios parentes dificilmente fa– zem visitas. Pessoas alheias, rara– mente se dirigem ao local, para trocar algumas palavras com os velhos. Na medida do possível, fe~ta~, torneios e piqueniques têm contr1bw_– do na valorização daqueles que, a margem da sociedade, são legados à extinção. No Natal, por exemplo, há uma constante tentativa de atender a todos os pedidos. No últ(mo, foi ~re– senteada uma camisola tipo de no1v~. para outra pessoa, lima l1;1ta de amei– xa. No Dia das Mães, os filhos se :i,~o– tovelam à porta. No C1r10, protestantes e espíritas respeitam o culto da maioria. Incidentes no asilo dificilmente ocorrem. Os·ciúmes são corriqueiros na hora das brincadeiras e de sentar– se na cadeira favorita. Ouvir ou ver, entretanto, para al– guns tanto faz. No canto da sala de es– pera um idoso fixa seu olhar numa imagem sem formas. O\h~r distante, desacreditado corpo r1g1do, braços cruzados, mantém urna angústia qua– se indecifrável. Nascer, copular e morrer. Eis apenas oque fica quando aos fatos te limitas: O ·Visitante Nascer, copular e morrer. Nasc1 um dia, e uma vez basta. {T.S. Elioll. Osenhor S. sobrevive, ''vou levan– do". Sem família, outros tantos se aco– modam na rotina da saudade. O passado e o presente se estrangulam Heraldo Montorroyos. Podes dizer: aqui muitos falharam. Mas que tenho eu, que tenho, eu, meu caro, Certo dia, jã na minha velhi– ce, um homem se aproximou de mim no saguão de um lugar públi– co. Apresentou-se e disse: - Eu a conheço hã muito tempo, muito tempo. Todos dizem que era bela quando jovem, vim dizer-lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua juventude, que eu gostava menos de seu rosto de moça do que desse de hoje, devastado. (Margue– rite Duras). Para dar-te que possas receber de mim? Amizade e simpatia apenas De quem já quase chega ao fim da vida. {T.S. Elioll. Sobrinhos importantes porém, de vez em vez, acendem suas memórias. Do fundo emerge algo pesado, mistu– ra de remorso e saudade. "A morte está próxima, capaz de eu ir também. Mas eu não tenho me– do não". No corredor que desemboca em urna cozinha, olhos estáticos acompa– nham sílabas de solidão. Não. ão se morre por ter nascido, nem por ter vi– vido, nem de velhice. Morre-se de al– guma coisa. (Simone de Beauvoir). or po vai traçando novas li– as. Ocabelo torna-se ralo, mbranquecido; a pele desi– dratada e sem elasticidade, . se enruga; a ausência de dentes mo– dela a parte inferior do rosto; oesque– leto se modifica, os discos vertebrais se comprimem... São tantas as trans– formações! É preciso, assim, urna re– ceita para se viver mais e melhor. ''Viver é estudar, se formar", ou, 'íião fumar e não beber que trazem molés– tias", ou, "amar a Deus sobre todas as coisas", ou, "levar a vida como ela é, mesmo sendo pobre". 96 anos, 6 no asi– lo, a viúva R. sorri, "eu sei viver!". Não consegue esconder os tantos anos, "se negar, nego a minha própria existência". Quando criança, !em- ~ branças de um tempo de festas, ter- j ouras e poesias. Lembranças que são ~ esquecidas, poesias que são perdidas ! num tempo que não volta mais; ela ~ recita Casimiro de Abreu, com olhos vívidos. ''Ah! que saudades que eu te– nho/ da aurora da minha vida/ da mi– nha infância querida,/ que os anos não trazem mais!/ Nas tardes va– gueio, nas sombras das bananeiras,/ debaixo dos laranjais". Na juventude oamor selou-se, du– rou mais de 56 anos, com um condu– tor de bondes. Juntos, o carnaval era mais alegre. "Lembro do Largo da Pólvora, dos carros alegóricos, ser– pentinas, lanças-perfumes...". OCírio mudou, "não parece como era", mas a fé na Virgeqi permanece. O 7 de Se– tembro, ''tudo lindo, urna beleza!". Ao longo do século, a sua família cres– ceu; 6 netos, 20 bisnetos, um trineto. Distantes, deixam-na aprender mui– tas lições no asilo. ''E bom viver aqui". Solitária, urna cadeira de emba– lo agrada o corpo fatigado da viúva y,; andando por longos corredores em busca de uma conversa amiga, ela ~~~~i ~e~r~~/~~~Ati'i.º me- ll:s invulnerável, não tens o calcanhar de Aquiles. Vais em frente e, quando triunfas, A alegria revitaliza, por certo, urna negra, que mesmo aos 80 anos não se envergonha de si. "O sangue não é negro, se cortar a pele, sai ver– melho que nem do branco". Afilhada de gente importante, ela sempre teve a oportunidade de visitar a Basllica de Nazaré. "O padre Afonso... era óti– mo"; no bosque, "as pessoas se ves– tiam muito bem"; do Port of Pará, "meu marido era estivador". Nas salas, pátios, jardins, quar- -------------s::;:=.iii=Siiij----~= tos do asilo, murmúrios e silêncio se confundem com tinidos. Na hora do almoço, reúnem-se pratos e colheres. Mãos terceiras levam legumes às bo– cas dos mais idosos. Cadeiras espa– lhadas pelos corredores largos, extensos{ abertos, ladeados por inú– meras p antas dão um aspecto mais aconchegante ao lugar. Entre os ho– mens o feijão, o arroz, a carne cozi– da, agradam o paladar por mais um dia. A mesa, lembranças res– suscitam: - Eu tenho 53 anos, nasci no dia 4 de outubro. - Eu nunca tive filhos. - Com 6 anos fui estudar na casa da professora Maria, e cal no choro. - A mocidade foi bonita. - Esta casa não é má. Envelheci, envelheci... Andarei com os fundilhos das calças amarrotados. Repartirei ao meio os meus cabelos? Ousarei comer um pêssego? Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei. Ouvi cantar as sereias, uma para outras. Não creio que um dia elas cantem para mim. (T. . Eliot). na solidão. Algo alegre, ''a família era ruim 1 ', contudo, "Deus é pai miseri– cordioso', "é nosso Pai por todo o tem– po", "ele é tudo". ''Duas lágrimas divinas, ambas caídas do céu. Uma das alvas nebli– nas, e outra, dos olhos de Deus. A Na– tureza, ansiosa de maravilhas a fazer, do orvalho faz a rosa, e da lágrima, a mulher. Por isso enquanto, no galho, a roseira abre o botão, na mulher en– che de orvalho a rosa do coração..." O senhor A. recordando 1917. Mulheres, mulheres : - Não fui homem de ter amadas. - Os espíritos sempre me per– turbaram. - Amoça que era partinez do ou– tro, decidiu dançar comigo. Ela lapi– dou meu coração, e ao invés de dançar em 33 evoluções, dancei em 40. Fui campeão de dança, em tango, no bosque Rodrigues Alves. Minha vi– da está na biblioteca pública. Homens, homens: - Quando mo– ça me apaixonei, mas peguei ele com outra rapariga. Nunca mais quis sa– ber disso. Alegre juventude, vem cá, E contempla o amanhecer lmaçem da verdade recém-criada, Dissiparam-se as dúvidas e as névoas da razão, • As árduas disputas e os terríveis tormentos. A insensatez é um interminável labirinto, De emaranhadas raízes que embaraçam os caminhos. Quantos ali já tombaram! Eles tropeçam todas as noites nos ossos dos mortos, E sabem que ignoram a tudo a não ser o medo, E querem guiar, quando na verdat:le deveriam ser guiados {William Blakel. Como de um baú, saltam lem– branças de amores perdidos, deva- 4de fevereiro de ,1990 · . DOMINGO Ho1e tem shows de MPB . tem o violino mó . · As 22 horos Chopp & Spetos• ;"º de Moisés no por conta do B dncerromento fica lo~ne e Nêgo N:,~ 0 : :r~e loncer. • os 21 horas O/· P esentam-se Mirolho, às Ílh~O e, 016. E no Cava/ero; 0 ence;,~em Pedr_inha por conta de AlexanX:n~~i;: neios de prazer, de vida. "Todos o aniversários de casamento nós fes jávamos. Festejamos bodas de pra ta ... Mas morreu a mulher, acabou casa". Salvo nas severas páginas da hil tória, os fatos memorávei ~resci dem de frases memoráveis. U homem a ponto de morrer quer s lembrar de uma gravura enlrevist na infância; os soldados que estão po entrar na batalha falam do barro o do sargento (Jorge Luís Borge~. "Quando eu era militar, tudo era bou,. Eu gostaria de ter ido à 2~ Guerrf Mundial". Inimigo? "Sempreprocuri> avortar". ódio? "Este termo não s~ subguardar". Hoje, porém, o sonho °t "guerra e paz" se mistura ao suor ci:i.Jl noites quentes desse Equador. Meu sonho já durou setenta anos. Afinal de contas, ao rememorar, não há pessoa que não se encontre consigo mesma. E o que nos está acontecendo agoca, só que somos dois. Não queres saber alguma coisa do meu passado que é o futuro que te espera? (Jorge Luís Borges). Sentados os velhos sonham bas– tante. "Quer~ morrer com minha filha". - Faço, ainda, planos do meu ra– mo de negócios. - Gosto de uma pequena. Eles interiorizam o passado sob a forma de imagens, fantasmas e de atitudes afetivas. Dependem dele pa– ra compreender a situação atual e o futuro; voltam sempre à sua infãnc~, pois nela se reconhecem, transceden do à morte que se espanta com os pri– meiros anos de vida. "Meu pai contava muitas histó– rias. Em 1895, quando ele trabalhava na floresta, tirando borracha, ele en– controu um caboquinho, dentro do tronco de uma árvore. Ele tinha dois palmos de altura, músculos fortes. Levar-am paFa o Rio de Janeiro, pra um museu de lá... O boto saía das águas encantava as moças : sumiam todas.'.. Quem me dera das florestà,s das minhas terras de amores, respi– rar as lindas flores e escutar o sabi~. Quem me dera ouvir das brisas, as suspirosas endeichas, as brandas cho– rosas queixas das aves de meu Pará. É bem gentil a minha terra, com se~ rios caudalosos, com seus bosques tão frondosos, com seu puro céu de anil '. Amemória explode aqui e ali empoe– sias. Seu A. declama minutos de sau– dades do ano de 1917. O relógio bateu mais uma hora. Era urna vez um velho. Todo ser hu– mano, por lei, tem o direito de serre– conhecido como pessoa em todas as partes; Toda a pessoa, como memb de uma sociedade, tem direito a se rança social ; Todos têm, em igual de de condições, o direito de acesso funções públicas de seu pais <Decl ração Universal dos Direit Humanos). Era uma vez os direitos... E vi ram felizes para sempre, num re qualquer. '½s pessoas nem sabem estou aqui"; ''Estou bem sossegada '½ minha nora é nojenta". Os dias passam, 4, 5, 6; eram continuam desprezados. Aesperan de ter amigos, ainda ronda aquel semblantes marcados pelo tempo. Tanto como se amam do amigos. Te amo, vida misteriosa Que tragas choros·ou regozijos, Horas de sorte ou dolorosas. Eu te amo e a teus dissabores Mesmo que.me tires oalento, Deixo teus braços sem rancores Com adeuses de um amigo. Com força quero-te abraçar! Acenda em mim as tuas chamas oafã da luta hás de deixar Me abrir oenigma da lua trama. Milênios pra ser e pra pensar! Abraça-me tu com fervor Se sorte não vais-me dar Pois bem, inda tens tua dor. Lou Andrea alomé
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