Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1950

Domingo, 31 '.éfi Dizemltro ele 1950 FOLHA DO NORTE' CONTO • • \Conclusão da 1.a pãg . ) ;• mais pwxnno m i; dirigisse a pa- identificado. Também toda a lm· 1avr<1, 1nterroguei-o, superior, ,:,ressão que tive desapareceu como se fosse mais autoridade com o tempo. Os banbos no AS MOSCAS do que ele. do, os passeios p~la mata, as ca- - Que bouve? çadas, os livros mesgotãvels ~ue MARIO FAUSTINO Desconhecendo-me ou preten- levei, as serenatas, os desaf10s denclo ver em mim algum alto no bar paupérrimo e as festas func,onádo do governo, respon- diãrias do clube humilde enche• deu ,ne : ram m~us três meses de férias . Mário Faustino dos _ <\ mãquina pegou um bO• Sómente boje, quando são pas- mem ~ados nada mais do que quatro San:to.s e Silva, Poeta e _ Ein '1 fiz eu. anos, veiu confirmar-se a certeza - _ u m homem . .. um trabalha- de que o suicida era meu co• dor tlcou em baixo do trem. nhecido. Foi minha mãe quem o prosador. Es:tá presente- Naquele lugar, afastado de lembrou, lendo a noticia de um qualquer vila, parecia-me impos• aesastre mais ou menos seme- slve. que uma pessoa pudesse lbante. mente no Piauí em gozo andar soslnha a pé pela Cerro• - Morreu como o Garcia, dls-. via . A última estação ficara ae ela. atrás pelo menos duas dezenas - Como o Garcia? de quilômetros e· a seguinte, pe• Recordei, então, o acidente, a las informações que me foram trãgica viagem ferroviãrla, E vi dadas, precisava pelo menos de o morto levantar-se de entre os de férias. inais uma hora de viagem para trilhos, dar alguns passos e, ser alcançada . agora, vir subindo a escada que Sôa-lhe o sangue aos ouvidos _ v amos lã, disse ao soldado, dá para o quintal de casa, sor- como as pancadas do. destino na , Encaminhei-me para a loco- rindo, o pequeno machado nas Quinta Sinfonia. :motiva, sob os olhares invejosos mãos. Senti-me levantado pelos Dando volta pela testa de cêra, dos outros passageiro11. Não im• seus braços fortes, erguido acima a mosca diverte-se espocando pediram meas passos, os solda• de sua cabeça, ouvi-o ameaçan- erandes bolhas de suor. As com– idos. Aproximei-me das pessoas do largar-me para que me as- panheiras, nas colunas das per• 'que se reunll{m próximo à má• sustasse . nas cruzadas, fazem o mesmo quina . Vi, imediatamente, o cor- Cuidava do jardim e do quin- entre os cabelos negros . : po do homem que jã havia sido tal, Revejo-o sentado no banco, As mãos de João estão crispa– puxado par a a frente e estava sob a goiabeira, rodeado pelos das. Também, pelas inãos há estend)do sobre as vigas entre animais, divertindo-se vendo-os moscas e outros pequenos inse• os trilllos. O pano com que o comer. E ouço-o cantar, muito tos, incômodos, terrlvels, fazen– liaviam coberto era um oleado. alto, incomodando os vizinhos, do cócegas por todos os lados, sujo e manchado de sangue. até :iue minha mãe lhe pedia si- João contempla o resto do uma vela, não posso calcular lênclo, Viera de um 'Estado qual- mundo seu e das moscas. Lls· q_uem ali tivera a idéia de acen- quer e meu pai, brincando, ga• tras no pijama, cabelos pelas dê-la, ardia ao seu lado. Seus rantla que viera fugido ou ex• pernas, sujo debaixo das unhas ôlhos estavam melo abertos e pulso. Os primeiros dias que dos pés, longas correntes de ·pano 11 ua expressão era calma, . Sua passou em casa foram de receio branco subindo desesperadas até cabeça estava perfeita, pois, não para mamãe que via nele um la• a angústia rigida do -s• do ar– Ílel como, não havia sido atin• drão, um terrlvel assassino, sem- mador. E moscas por todos os ftids. Apenas um fio de sangue pre disposto ao ataque. Meu pai lados, como se João estivesse íiie escorria da boca e foi aque- ria desse pavor. e depunha em morto, E, quem sabe, não está? Je fio de sangue, sobretudo, que Garcia toda confiança, Das re- Neste momento de torpor, não ine levou a pensar: eu o conhe- . ,;:ordações que tenho dele, uma tem certeza nem de que estã i:o. Eu o conheço de alguma ficou mais nltida e bem serve vivo. Melhor seria, mesmo, que parte. para revelar seu carater. estivesse morto. · Voltei-me. Constitui uma des• Minha paixão, por essa época, Porque, então, não senttrla tloberta para o maquinista. Viu era uma baladeira trocada no moscas, nem calor, nem suor, em mim uma nova pessoa a . colégio por qualquer outro brin; nem ouviria palavras rabujentas quem se desculpar: quedo. Distraia-me atirando con- do lado de io,3 do quarto ~echa• • - Não sei como foi, senhor, tra os pãssaros que pousavam do, nem sentiria repugnância de bilo sei como foi, O homem vl- nas ãrvorea do jardim, inútil- si próprio. 11ha em sentido contrãrlo. Ca- mente aliás, pois era multo raro Felizmente, trancara-se à cha• minhava até distante dos trilhos . a pedra atingir a árvore visada , ve. ;Eu ainda apitei. Apitei mais pa- Garcia achava uma graça imensa Chegara do trabalho cansado, ra saudá-lo do que para o avisar de meus esforços. Um dia, deses- nervoso, os olhos mortos, os \'le um perigo. - Voltava-se pa• perado com a Inutilidade de mi• membros fraquejando de baixo de ra os outros: os senhores ouvi- nha baladeira, comecei a cbo• toneladas de eoi e de abuoereru iram o aelto . Qtiando , . máqu r C~la velll • USID. 118::~ )ae .q>rOmrtOII li.tm.ou -- lfltda 'lHllle. . ~ clal• - --- ~alto e ;to,ou-ae diaDté' dela, ta- r.a. -armou•• • "1'& um lentarl-àel trabalhára. alo crivei, lncrk'el. pequeno púsaro que cfleava ao ra . Só com o patrão, sobre um l Gesticulava em auaa esplica• chão. Foi cousa de aegund~. serviço de datilografia. Não j!:ões. Soube que o homem flcára Apanhado pela pedra, o passar!• acompanhara os colegas mais ve• Fºm o torax completamente es- nho rolou pela terra. Fez uma lhos e viera direito para casa , Jn.1agado o que, allãs, era fácil de . tentativa de vôo mas, sem for• Vinha doido por um banho, "descobrir olhando a 1)()$lção do ças, deixou-se ficar. Dei um grl• como se necessitasse umà purl• corpo coberto. Fixei mais uma to de alegria e corri a apanhá• flcação . Tinha . certeza · d~ que ~ez o morto e, nesse instante, lo. Entretanto, Garcia foi mais aquele banho trar-lbe-la de volta não foi apenas impressão. Tive rápido, Pegou-o antes de mim _e a tranquilidade desapar·eclda. ',a certeza, a certeza absoluta de foi em vão que lhe pedi que mo Expulsaria a angústia dos seus · g_ue o conhecia. Mas de onde? entregasse. O pássaro ferido p6ros, das suas narinas, do's seus ··Quando o havia visto antes? aquietou-se naquela mesma mão olhos . A água escorrer-lhe-la pe. ,· Tomavam agora providências enorme que o atingira. Garcia las extremidades do corpo e da · 110 sentido de recolher o corpo olhava-o com carinho. Levou-o alma, penetrar-lhe-ia os ossos e ao trem, a fim de que a viagem para casa, lavou-lhe a ferida, ele, como sempre, cantaria para ·111ão fosse mais retardada. O ma- improvisou com pedaços de es- a vizinha. ·~uinlsta continuava falando, des- tôpa, pano e uma cuia, um nl• Mas não. Não havia égua. :i.:ulpaado-se, contando mais uma nho para ele. Tratava-o com tão Passou meia hora, morto de :vez como se passara o aclden,te, . exagerada efelção que era bem vergonha, de calção, percor'rendo - Deve ser algum mal~co, , o criminoso penitenciando-se do com o balde minúsculo, (não en– ,me o .chefe do trem, soprando crime cometido. Eu via os cura- contrara a lata de gasolina) o a chama da vela e guardando, tlvos diã1i os sem cbE:gar a com- pequeno espaço entre as duas cuidadosamente, o côto no bolso ·-preender quais . as intenções de portas de porão, da sua para a como se aquele . pedaço de cêra Garcia , Mas quando, em certa da vizinha, para a qual costuma• ~stivesse destinado a servir em · tarde, Garcia abriu os pequenos va cantar. C>Utra morte, pedaços de pano que agassalha- Depois, no banheiro, qUSJldO ;14 ·, Não. Não era um maluco e vam o pãssaro doente e este fu• sorria para os reflexos do sol nos llJ.sso eu estava mal.a do que cer- glu, tenho certeza de que nunca mosaicos úmldos, olhou para a lo . Caminhando em direção a o vira tão satisfeito. Acompanhou água. sneu vagão, levava sua fisiono- com o olhar o vôo. ainda incerto Que nôjol · mia em meus olhos, esforçava• da pobre ave. Viu-a pousar numa Turva, escura, com lama bar- }lle para recordar onde e quan- lirvore mais adiante, descansan- renta no fundo da bacia branca, J}o eu o havia conhecido. Co- do, e sorriu quando o pãssaro João, de cócoras, nú, desiludl– fihecia aquele homem e, mais do desapareceu por trás dos telha• do, traçou com um dêdo as inl• 'l;tue isso, atormentava-me a dos que se avistavam na varan- clais de seu nome no barro dé• Jdéla de que ele havia tomado da . Depois abraçou-me, feliz, baixo da água. ,parte em algum trecho de mi• como se, em sua vida, aquele No almoço foi pior. Vieram as ,ma vida. . . gesto fosse a primeira boa ação • perg11ntas, Os conselhos. Por que • Já não era um 1mpoi;tun,o o de que tinha conhecimento. • chegara tarde? Não, não chegara \'elho que, aproveitando m in~a Alguns meses depois, meu pai · tarde. Nem fora ao café. P as– ~usêncla, sentara no lado deso- trouxe uma carta a Garcia. Nua- saria nos exames de segunda épo– '.i:upado do banco em que eu via- ca descobrimos que notlcias lhe ca? Não passaria, Quem não ea– java. O infalivel apito fez-se deram aquelas duas tiras de pa- tudou o ano inteiro, como pode– '\ouvir. Imediatamente estáva- pel nem sobre eJas ele fez qual• ria meter na cabeça, em duas m os, de novo, correndo entre quer referência . Se por aca- · semanas, os compridos progra– j>arrancos, árvores sêcas e cam• so meu pal estava ao par de mas? Por que não dobrara direi• \~S verdes. Em pouco, tudo vol- · tudo também, até hoje, nada re- to as calças? Por que o fundi- . u a se normalizar. Os comen- velou, O certo é que Garcia lho já estava sujo, se boje que ários, 'porque a verdade havia, nunca mais foi o mesmo. Come- era quarta-feira? Por que não se ~final se espalhado, silenciaram. · çou a beber, desaparecia de casa corri1''a? Por que era tão rela– D homem, à minha frente, con- para regressar dois, três dias xado'l :l!: por que não respondia? · :t1nuou com seus pasteis e lá ea- · depois, completamente embrla- Tr..ucara-se no quarto. lã quieto o soldado. gado. Lembro-me bem de que o A-wra, a mãe rabujenta res- . Não se afasta de minha lem- vi, uma vez, rolar pela escada, munga do lado de fora, Parece 1>rança aquele corpo estendido sem forças, vencido . Do alto, eu - que em cada uma dàs portas hã ,-11ob o oleado sujo. Vejo- nova- olhei aquele homem, estendido, uma pessoa espreitando, falando, ~ente a calma de r;eu rosto, seu os olhos melo abertos, um fio perguntando, dando conselhos. •,olhar par ado e o tén-qe fio de de sangue escorrendo de seus João chega a ter visões, angus- . angue descendo de seus lãblos, · lãb!os como, mais tarde o en- . tlado. Dezenas, milhares, bilhões mbro mais uma vez o gesto do . contrel, entre os trilhos, sob o · de pessoas em cada porta, muitas befe do trem guardando o res- oleado imundo. Depois de mui- · trepadas em cadeiras, fazendo– ' da vela em seu bolso enor- to o tolerar, meu pai viu-se obrl• lhe discursos. Tapa os olhos com e . E, a tódo momento, torna- gado a mandá-lo embora. Sei o lençol amarelado. Horr[vel, ' mais forte a certeza de haver que chorou quando partiu pois E as moscas , Grandes, aterro– ' nvivldo com o morto e chego eu mesmo assisti sua despedida. t:lzadoras moscas de asas .risca. me interrogar se não o terei Suas noticias foram escaceando das, num movimento irritante de ado muito tempo atrás. e, em pouco, Garcia jã não era • antenas, coçando-lhe a planta dos Os ;Jornais não chegavam à vila · lembrado. Se, ·casualmente, al· pés como no suplicio chinês. ra onde me dlrlgl ou chega- guém em casa. perguntava po1· João começa a rir. De fora, iro muito irregularmente. Dai ele a meu paf, sem outras inten- - sempre à porta, a mãe chama-o o ter lido as notlcias referen- ções que não a curiosidade, o ldlota. Não estará mesmo. amar– - JO desastre, _i)as quais, __poi.: velhC) dJzla apenas: Não sei, não - rado a um tronco, com sal es– '"', , ., ~oi:t, devia ~ , ~ , ~Ql: Deve andar pqr ~ 1 ,w~diiw~. "1111'49,,ua planta (Jos ,~,. m<1~- 'lt, ,·.., •, 'l rendo de rlr às gargalhadas, com a cabra gigantesca à frente, lam• bendo o sal, torturando-o, ma– tando-o? Esconde-se das moscas debai– xo do lençol. Mas aterroriza-se porque, estirado debaixo dos pés unidos e sob a cabeça retesada, o lençol toma · a forma de um caixão de criança, branco, cresci– do para a mãe caber dentro . Procura libertar-se do lençol. Mas um motivo de desespero. O pano prende-se-lhe nos dedos, nas mãos, enrosca-se-lhe pelos braços independentes do cérebro, prende-se nos cabelos, esconde-se óebaJxo das costas. De um Sllfa• não, engulindo em sêcó, João. li• vra-,se do této protetor. De novo elas vêm em profu– são, voando como uma nuvem de gafanhotos pelos campos ver– de-cores do pijama. Talvez nem haja tantas mos– cas. .João, porém, vê milhões de• las e áté os que participaram dos comlclos atrás das portas, atravessam-nas patinando no gie. lo, os braços transformando-se em asas de moscas. A rêde está como um oceano Je águas tépidas. O lençol, mo• Jb,ado como se todos os homens ,1 tivessem derramado suas lá• trimas e seu suor, No teto, ou– lros milhares de moscas, cum– primentando-se, "~p.t>ram • vez:, pinhando-ae em fOl'llla. f.alD ~ta trltar, a t para ó ..,i ral, tomar providênchls contra aqueles bichos Imundos. O go– verno não comprou aviões para dar combate aos gafanhotos? Porque não manda a vizinha ex– pulsá-las, a cabeça coberta como 110s sàbados de limpeza, de es– panador em punho. Bastariam, talvez os raios de seus olhos para queimá-las todas. Bastaria um gesto, um passo. A própria lembrança da vizi– nha cobiçada livra João, por mo• mentos, ·das moscas importunas. :t quando a jovem cresce das asas de uma mosca pousada no chão, Cresce muito, subindo para o teto, abrindo-o, mostrando a João o céu imenso. Maa a metamor(ose repete-se em sentido inverso e milhares de moscas cobrem os olhos de .João de a;ombra, afugentando a lem• brança da vizinha. Trazem ca– lor, o próprio sol e o corpo de João estã pesado que não sabe como a rêde ainda não desabou, como seu corpo não perfur ou o chão como a moça o teto, como não caiu com estrondo sobre as lajes do porão. abalando a casa até os alicerces. João, os olhos vagos, contem– pla o espelho, escurecido pelo mormaço; As quatro garras de aço amarelo seguram-no com força e os dois planos cruzados de rêde parecem diminuídos pela energia dos dezesseis dedinhOs vorazes, querendo enterrar-se no vazio polido. Aterrado, João levanta-se _ da rêde. As garras do espelho estão crescendo. Recua . Não são mais de ferro dourado, mas perderam a rlgt. dês. Garras de um monstro es– tranho coberto de moscas, saindo de trás do movei, crescendo pe– las paredes, dobrando-se no teto, chegando a cabeça enorme de– fronte do rosto de João. Garras se apertando, as quatro se apro– ximando e o barulho. Vem um berro de fora. Joito volta à realidade, contem• piando os pedaços do espelho no chão e a escova de cabelo mer– gulhada entre seus dedos inertes. "Não responde. Que batam A porta. Que a derrubem. Que grl-. • tem, que a mãe chore, desespe– . rada. A cada uma das portas vol– t am os que, !'-ª .. pouco, faziam– lhe discursos veementes, trepado. em cadeiras, ln Clamados . Em cada canto do quarto, ag6,, ra , está sentada uma sombra cin• zenta, todas quatro multo iguais, serenas, contemplando o, .João leva as mãos à c.:-beça, puxa os , ca1>elos com foi;ca , ., lJ M: DIA. Conclusão da Lª Página ração falar pelo seu silêncio ple• no de Interesse, ' Via-o dizer: "Dormiste com ele", A noite, antes de salr entrou no quarto do pai, como sempre fizera. Quando era criança, gos– tava do cheiro daquele quarto , "Cheiro de funeral", pensava ago- Tinha aquele jeito de falar dos poemas de Luciano, como se ele houvesse escrito uma Bll;>Ua, Quando escrevia - caía-lhe c~– pa na pãgina - era assim: ra. Nobre crisântemo caldo no melo do leito vazio. Pols o escrever para ele era um talo fragil ou os dedos de um anjo, a sombra de uma hora com suaves cambiantes claras e sombrias, sombrias e claras de um véu suave de madona, Luciano colheu um livro em uma estante e ficou · lendo :ité tarde, quando o deixou tombar ao chão - igual a um pãssaro morto. De tarde sa(u; na rua brinca– vam crianças; as mãos se eleva– vam no ar, lirlos bolando. "Cêdo os llrlos se fanam•, pensavam os velhos com amargor. As mãos porem ofereciam-se ao céu e se uniam, a roda alegre aprisiona– va o tempo. Um mendigo, perto de um muro, estendia o braço triste, Uma onda de homens e mulhe– res passava inesgotável por Lu– ciano, brancas umas outras ver– melhas, azuis, amarelas, Um onibus passou fazendo ba– rulho terrlvel, rindo de si mesmo. - Luciano ·viu-se à porta de um cinema, e entrou. O calor fazia as resplrações apressas, os bra– ços lutavam veladamentf por um pouso. Um leque se movia mo– ·n6tono, ePtraçãlhando o ar pe- gajoso. A sombra do mendigo se derramava da tela, espalhava-se pelas cadeira·s, o mendigo sêrlo ante homens e mulheres mais be– los que lirlos e os coraç"l!es poços de pecado - tinha na mão uma flor: recebera-a daquela mesmà que o amava, não de noite quan- 0 do era mendJgo, mas de dia, ·quando era um homem cheio de ' fortuna e beleza. · Luciano desviou os olhos para o lado, encontrou dois oll1os olhando-o também. C'l",u um leve · e esta• . · DeslfloU lentamente N no braço da cadeira, procurando 01 dedos da moça; eles fugiam, no entanto. Quando procurava dizer alguma coisa capaz, de o aproximar, de ·a fazer falar, aa luzes se acenderam. e Na sa[da, estava bem perto. · •Qual ê o seu nc,me?• •Angela•. · Onde &e perdera a sombta do · mendigo? Simples palavras a es– tragalhavam agora, pãra, admirado, diante do 'guar– da-roupa amarelo. Do fundo do grande espelh9, .entre as manchas escuras como as moscas, o Louco de Picasso apr:ixima-se, de pijama. Cabelos desgrenhados ·e gestos alongados, . entorpecidos, dêdos mais, longos que os das garras do outro e.,,. pelho. Não. João não pode mais aguentar. Nos quatro cantos, as quatro sombras cinzentas pareceri le– vantar-se, os mantos arrastando moscas defuntas pelo chão. Em baixo, na gaveta aberta, deve estar qualquer coisa. Deve estar. Nas camisas ou embrulhos de presentes antigos, não esse ramo· · de flores sêcas que lhe espeta o · dêdo, não essa caixaa• de sapa• · tos, não esse quadro, frio e ve• lho, de vidros rachados. Mas isto . Isto mesmo, este ob– jeto frio como o quadro . Através de mais um espelho partido, no meio do ruido que vem de fora , excitado pelo tiro, parece-lhe ouvir um gemido. Abei-ta a porta furada, os olhos de João, embora vagos, verifi– cam, atônitos, que não está nin– guém . Só o vestido verde, o grande buraco preto no melo, balança como a :farda de um herói morto, condecorado de lantejoulas, Com a queda da primeira ban– da da porta forçada, OI milhares de prega dores, o pai, a mãe, o avô, todos se precipitaram para dentro, mas estacam. temerosos. Um i!ro certeiro para cada uma das sombras cinzentas, que fogem espavoridas para dentro do mundo do espelho. v; O último, para João. Sangue. Muito sangue . Negro, como de bois cansados no mata– douro . Também como o de um touro abatido, o pescoço longo de João estã estirado no chão, paralelo a um dos braços abertos, todo co– berto de estranb'ls moscas prjl• 1 ~as. i de PQl:Aa&t vermelbu. Como se não o tivesse visto, o velho continuava curvado, quel– mando velhos papeis. Perguntou devagar - a voz: ferida pelos primeiros soluços de abandono e saudade ..,; se ele ia sair. Depi>ls, sor rlndo, e o sorriso nele era um colar de pérolas em · um esqueleto, falou-lhe de um passeio felto uma vez, havia mul• 10s anos, quando era rapaz ainda. • Que um velho fale em Deus . .,_ pensava Luciano na rua - ou Ja Divina Comédia, estã bem, t,{as falar em passeios.,.• Agora dizia para Gabriel : ":i!: um poema", Surgiu na orla do mar um pe. regrlno, entoando um canto cla– ro e viril por trás do elmo de rerro, Nasciam crianças, ele partiu. Os lugares onde vira um tapete de flores maclali, torna– ram-se uma única flor, negra e rugosa. o peregrino continuou na andança tão longa - as criançaa 5e tornaram homens, Ele andou sem descanso ...! os homens estavam cheios de deses– pew - por terras .de fogo e de gêfo . Quando voltou - os hO:: mens estavam em pedaços - o mar tinha ainda o mesmo ritmo largo e profÍmdo que ele vlra ao partir, Gabriel, no entanto, nãc dlzta as doces palavras da llsouja. ":l!l de um poeta antlgo",..mur– murou, · Recitou - • goste.• "'\Ulto quan– do li e decoret•J eip'ficaFa, - o longo poema. " Que coisa rldlcula é a ute– ratu•a• , disse Luciano em caaa - nunca mais escreveret•. Enquanto tsso Gabriel pensa– va em que o que fizera tinha notãvel; de- . 16 dé • e (Conçlu1ão da 2&, piglna) cebera uma caixa de Papal Noe1, Ali dentro estava o p(li. Maior porém foi a sua ,angústia quando abriu-a. O pai · estava morto. Morreu na caixa, asfixiado . Iste ·seu Jonas lêra numa das revistai. que ele colecionava, E fazia uma advertência antes de contá-la : • Não se deve chorar os mortos". Ia andando feliz, o coração leve. Seu Jonas ficaria eterna, mente agradecido, Viu no rosto delt:;, a ex{lressão dos olhos, Estava pens,1ndo em seu Jonas quando entrou em casa. "Afinal tudo pode melhorar", pensou, l" empurrou a porta, A filha estava sentada no chão e levantava pequenos pedaços ae· paus na tentativa de armar um-;1 casa. Punha o pri~elro, o se– gundo, daqui, . daU, mas quanao chegava a vez da cumieira a cas.t despencava e a criança caia e1n desespero . Quando viu a mãe, l<!• vantou os braços: - Trouxe, mamãe? (A mll'.e lmobilozou-se, as mãos sobre os selos-, - onde está, mãe, o brin– quedo? A senhora não prometeu? Hein, mãe? (Foi eatortando o rosto, depois o choro desceu-. A senhora não disse que me dav . se eu estudasse? Onde estã, heln, mãe? A mulher afagou-a, as mãos nervosas : - Mas quem disse que eu não darei, menina? f>ou sl.m, m as hoje, não I Fiz um presente do dinheiro e não pude comprar . Fiz um presente, filha, Uma pes– soa precisava . A criança gemeu: - Mas a senhora não prome• teu? - Claro que prometi e você es– tudou multo . Eu sei. Porém a pessoa a quem dei precisava m ais do que você. De_pols você jâ tem a boneca, filha. E a outra pão tem nada• A menina enchugou as lãgrl– mas. "Mas estudãra tanto!" - Ela é mais criança que eu, mãe? A mulher estava triste. Natu– ralmente que era mais criança e estava precisando. - Não tem juizo, minha filha, 1em juizo. Multo mais crianca que você. - E não tem pai como eu. mãe? Não tem, não? Hein, mãe? E parou de chorar lembrando a boneca que a mie aevia tet 41ada wnoésa.

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