Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1950

~SUPLEMENTO Artes ._, , 1 Letras -JtARA-BEUM Domingo, 29 de Outubro de 1950 NUM. 1sr ::.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.:.::.:.:-.:.:.:.:.::.:.:.-.- -.----------,-_-_--:_-_-_-_-_-_-_-_-_-_-_-:_-.:_-_-_-_-_-_-_-:, C1~ rJ~~~SP~1.~~ector \OTÉtO DOIS POEMAS De Augusto Frederico Schimidt CANÇAO DA BREV E SERENIDADE OUÇO A CHUVA CAIR. OLHO AS RUAS MOLHADAS PENSO NAS VIOLETAS E NOS JARDINS EM FLOR. , , DESCE.AO.MEU CORAÇÃO .UMA PAZ SEM MEMóRIA DESCE AO MEU CORAÇÃO UMA DOÇURA IMENSA. LEMBRO O AMOR A DORMIR TRANQUILO E SOSSEGADO 'A RUA ESQUIVA E SEM PREGÕES, A RUA° POBRE, 'A RUA HUMILDE E A CASA PEQUENINA, EM QUE SE ABRIGA LEMBRO A INFANCIA QUE FÓI E OUTRAS MANHAS JA LONGE. SINTO A VIDA COMO A CHUVA DESCENDO SOBRE OS QUIETOS BEIRAIS, SOBRE AS RUAS, DESCENDO SINTO QUE O TEMPO É BOM PORQUE NÃO PARA NUNCA. UM RITMO.DE ABRIGO ENVOLVE AS COISAS, TUDC, VONTADE DE DORMIR O GRANDE SONO CALMO OUVINDO A CHUVA TRISTE E MANSA A DESCER *** SOBRE MIM. CASCAIS, Portuga - Co– nheci Clarice Lispector uma noite, fugRzmente , em Lisbôa. Vinha do Rio de Janeiro e di– rigia-se a Nápoles. Foi isto há ,ms cinco anoo. Havia calor. Era no verão. As janelas do ~uinto andar do prédio em que vivia Ribeirt1 Couto estavam . abertas sobre as colinas de Lis– bôa. E Clarice Lispector en– n .. ou no salã-0 onde a aguarda– vamos como uma dessas ima– gens que já trazem -em s1 o ))rincfpio do seu próprio desva– necimento : são tão belas aue não podem durar. Impossível dizer de que côr eram os ca– belos dessa imagem flnida. Não retive dela um único por– menor. Apenas sei que era bela e que a ·sua presença ficou para sempre naquele salão 0>1de nunca mais entrei que a não visse. Pouco temno depois recebi. l'emetido da Itália, se bem me lembro, o seu primeiro livro - "Perto do coração selvagem" - mie pouoo antes aparecera ::io Rio de Janeiro sob o mes– mo signo de fluidez que presi– dira ao próprio ap:uecimento da sua autora em Lishõa em certa noite , de verão. Era um !UGENIO GOMES livro fos~orescente, espécie de fogo-fátuo, qualquer coisa co~o 0 relampejar de uma con,.scien- RIO - Entre as pri:1clpa.is eia no meio das trevas de uma tragédi•~ de Shakespe tre, a noite tropical. Li-o com ames- df' "Otelo " é i;eralment1, con– ma sensação de presença flui- siderada como uma de suas da que experlmenta!'a 011an_do melhores construções dl-amá- entrevira a silhueta de Clarice tic-as. . Lispector desenhada no céu de Não sendo a ngor uma peça estrelas que forr:,va as janelaF problema, nem por isso tem do salã< de Ríbei!o 9outo, deixado rle alimentar c-<.ntro– abertas sobre as lnv1sive1s co- vérsias a. respeito de_alg unas linas de Lisbôa. Num pequen~ de suàs passagens e da i:1ter– art!go aue então escrevi falei pretação dos • caracteres de do aue ~e me afi_rurava ~ maior Otelo, lago e Desdemona , novidade das suas pá"lnas .-·· Dr. Richard Flatter, erudito a introducão do "monólogo 11;- de língua germânica, que de– terior" sistemátiro na história fendeu anteriormente um l!!ln– do romance brasile•.-o. to de vista revolucionário so- Passaram anos. Clark~ LI,;- bre "Hamlet", traz ag-0ra nt•Vfl. pector publicou. pntretanto, 01~- e interessante contribO.ição à tr-o livro - "0 Lustre" - 11- exegese -shakespeariana, com vro que me não chegou às a sua obra "The Moor of ve.. mãos. E agora. vai para um nice" (H.~inemann, Londres, ·ano. eis que de novo perpl!-8~ª 1950). t: uma análise que, p el, por diante de mim a prec1tr1a audácia de suas conclusõeir, imagem que o tempo canser- desmoraliza, uma vez por to. vara "possfvel" recortaida no das, a· idéia de que a tragédia noturno céu e~tival de Lisbôa. · de Otelo é uma tragédia sem "A cidade sitia:'la" é o tit1;lo significação. do último romance de Clarice Quem conhece a peça ou a 1-ispbctor. Foi escrito em Ber- sua tradiçãp, não poderá com– na. em 1948. ' preender que haja dúvida CANÇAO DO POETA NO Poeta fui. E quando triste, cantava. E no canto as mágoas lavadas Não doíam mais. EXtLIO Poeta fui. E quando saudoso, cantava. E no canto os mortos refloriam I, FILOSOFIA DE PIO .BAROJA Ter-se-ia dado _uma. tr_aru- quani,o a duas coisas, pelo me– formação substancial na tec'D.i- nos, que parece saltarem aos ca novelistica da autora de olhos a.e todos : primeiro, Ote– " Perto do corr..7ão selvagem"? lo era negro; segundo, o ge– Não O creio. Todavia, qualquer neral mouro matou Desdemo– coisa · me parece mudada no na exclusivamente levado pel<> seu estilo. Já n&o é o "monó- ciume. logo interior". tal como o rea- Pois, nada disso é tão sim.. lizaram um Jamrs Joyce ou ples, como se poderia supor. uma Virginia Woolf. cme cons- Anomndo-se em alusões que titui a má.quina nov 0 1í,:;tica de se êncontram na própria peça, "A cidade sitia.da .'· O "monó- Bradley concluiu que Shakes– Jogo interio:-" exnrime o mun- peare imaginara Otelo com~ do e a vida em inte!'ioridade: um negro, e não como um ho– é a vida e o mundo vistos de mero triguriro, mas, apesar de dentro para · fora. do centro sua autoridàde, essa discrimi– m1ra a periferia. Não ~e node nação ·ainda é matéria de de:– dizer que seja esta a visão do bate. E as saudades passavam. Poeta fui: E quando sozinho, cantava. - : E cantando tornavam presenças perdidas E vozes defuntas ouvia. Poeta fui. E quando a ausência da infância 'A alma secava, no canto. úmida de láitrimas 'A iniância tornava. Hoje, poeta não sou. . E mágoas, saudades, solidões Não as lavo mais cantando. Moinho dágua moendo em silêncio Mói o que tem a· moer, E dói a der até cansar: E nem o vento largo canta E nem canta a água que cai. Poeta no exílio da poesia Que fizeste da voz estranha Que Deus te deu ? PAUL VALÉRY MEU AMIGO GEORGE$ DUHAMEL. Todas as quintas-feiras, Paul falery penetrava, quase sem– pre com atraso, na pequena 11ala agradável e mal ilumina– da em que se reunia na Aca– demia. a comissão do dicioná– rio. Não tampo os ouvidos às zriticas amargas ,que se dirt- em. com frequência, à Aca– :lemia e algumas dentre elas não me parecem injustas; mas il_evo a essa instituição ter po– üid-0 espreitar amizades que em Dutras condições permanece– pam episódicas e incertas. En– fre 1919 e 1935, eu encontrava Valery umas vinte vezes por ano apenas e era sempre no l!USsurro dos almOQOS, dos jan– lares ou dos comités. Durante -t> último decênio encontrei- 111e com Valery, pelas injun- -es das disciplinas acadêmicas, mais de sessenta vezes por ano. .,~C1 -;lnúmtrru. hor~- ,sen:tado ao seu lado, conversando em voo baixa e mesmo desfrutan– do com ele de um silêncio em que nos oompraziamos.. Eis o que pode, na verdade, merecer uma ação de graças. Valery chegava, pois, eom P"queno atraso. Exc\J.sava-se em três palavras, pois era ele a própria oortezia e entrava para o "entretier" na ponta dos pês..• não direi antes na ponta das asas. - Valery - declarei-lhe um dia - falou-se muito de você esta tarde, entre pessoas com as quais eu me encontrava e naturalmente disse a seu res– peito o que penso. Como não Que o que os meus prop6sito13 alterados vou reproduzf- 08, com eXatidão, enquanto es– tão ainda quentes no meu CO• ração e nos meus lábios. .lColltinlllL na 2a. l)àpg,) ,. ~ZORIN :i:: · realmente 'i:1m filósofo Pio :13aroja ? Qual o seu sistema lógico, ri.goroso, g1!0métrlco ? Qual a sua antologia e a sua cosmologia ? Não; o autor de "La Bus~" não tem Ulll "Disw curso sobre o método", nem 1,1ma "Critica da razão pura", nem um "Tratado teológico– politico". "Houve um tempo - escrevia Balmes em 1343 - em qUP. considerou a filosofia como uma ciência exclusiva. intei– ramente separada das demais, limitada a certos obletos, for– m3ndo o que se · chama um corpo de ciência; mM. atual– mente, de.cide o século nassado. a filosofia não é mais um ramo dos conhecimentos humanos. não mais uma raiz ou um fru– ·to : é um jugo nrecioso oue l!e insinua nor todss as ntrt.es . A&;im. existe hoje fiJ<t;ofia cient.fflca, fllosofia artfstic,i. fl– Josofia do mundo". A filosofia está em todas as partes; 1l1ll pintor. um escultor, um músi– co, um poeta podem ter sua filosofia peculiaríssima. Tero– na Pio Baroja. Que é a vida? Qual l\ nossl\ finalidade sobre o p1.aneta ? Como encontrar a ventura que- 1\mblclonamos? Baroja é um nessimista Irredutível. Da lei– tura de seus livros pode surgir a animst.iosa iiensação de oue nossa vlda não 1em objetivo algum. Há em seus romances homens jovens que assistem o declinar de sua própria .1u– ventude. em melo de uma espantosa !nutllldade de todo esforço; homens velhoo, que ocultam a amargura na bru– t.alldade e no civismo; literatos, jornalistas, burgueses, atisto– cratas... Todos aniquilados, sem plano, sem orlentaeão, sem ideais. À primeira vista poder-se-la crêr que o pessi– mismo do autor nasce do des– concerto e dos males sociais. E, entretanto, nada mais fa]sQ se investigarmos a origem des– se sentimento em Baroja. A , raiz está mais funda: não é na sociedade que se radica o mal, mas na própria natureza do homem, una e indestrutível, em todos os momentos da história,· sempre igual, como acreditaram os grandes pesslmistas, Hob– bes, Graclan, Schonenhauer, 'l\b'a,,.. ~oi,, Que vamos opor a essa des– consoladora filosofia ? A espe. rança do progresso ? A fé na perfectibilidade humana ? O trabalho? ' - "Não há salvação, minhl\ vida está aniquilada" - diz um dos personagans de "Mala hierba". E responde o outro: "Nfio; há o trabalho. Nem to– dos os homens são mesq,u,nhos e miseráveis; lutar, assim é a vida. Vale mais a _inquietude, a azafama permanente, a al– ternativa continua dos praze– res e das dores do que a imo– bilidade". Isso escreve o novelista. e de nr onío nns lancamos· nun1A vida febril, de negócios, de via– gens, de mudanças r:i.pidas. Dir~se-ia que nrocedemos as– sim para enganar a nós mes– mos, para não ouvir a voz inte– rior que nos g~ta a inutilidade do esforço, para alcançar uma ilusão que corre irónica e ver– tiginosa à nossa frente . .. O trabalho, paTa que ? As in– quietudes, os afãs. as mmlan– ças, para que ? Veia como se destac11m. claramente, as li– nhas de um nilismo a na.rali– sar-nos os instinto,;. Si•ramos /f"!qn1:!W"lt'.1- ""' :;:1,:1. r~.-:.na) mundo que se nos oferece ,!!º Como · quer que seja, a cfr– novo romance de Clarice L1s- C'Ullstância de se tratar üe um -pector. Agora. nele, o "monó- .homem de cõr, sempre influiu logo interior" foi substituído :poderosamente sobre a apl'P.• por uma como que "consciên- ciação do caráter e da tragédia ' eia conceptual" do mundo. Jã , de · Otelo, prlnclpalmente nos não são. imagens desdobrando- Estados Unidos, quando a cri– se em imagens que "realizam" tica ·refletia de maneira mais 0 cosmorama em que nos é incisiva o preconoelto racial dado ver as persona,zens do ·predominante no pais. seu liVl'o. A operação que O antigo presidente da 'Re– atualmente se nos pàtentefa na pública norte-americana, John máquina novelistica de Cl~rlce Qulncey Adams, para quem Vsnector assemelha-se ma;s à Otelo era negro retinto, sem operacito conceptual que domi- os "cabelos encaracolados", na a fábrica dos romances de QUe -dr. Johnson lhe atribuía., um Jean-Pau;! Sartre ou de estava plenamente convencido uma Simone de Beauvolr. Im- de que a moral da tragédia é previstamente - pelo menos que o casamento da mulher para mire, que não conheço branca com homem de .cõr "O Lustre" - Clarice Lispec- constitui uma violação da na– tor desvend~.-se-nos como uma tureza ..• • •existrncialista" : 11. primeira :t evidente que, na Inglater- " existencialista" do romance -ra, a tragédia não deixava brasileiro - nelo menos, do ro- de repercutir igualmente como mance brasileiro que eu conhe- um exemplo neste sentido. Um ço. · Thomas Rymer, que viveu. no A etlquet'\ não tem importân- fim do século XVII, já adver– cia. Clarice Lispector, "exis- tia que a primeira lição da Lencialista". não deixou de ser peça era que as moças de qua– Clarice Lispector. Pelo contrá- lld'ade não deviam fugir com (Cenfinua na 3.ª na~na) os mouros sem o prévio con– sentimento de seus pais.. • RE c ·o LH IMEN To 1 . Por muito tempo, aliãs, pre• valeceu a dfSconfiança de que o móvel da tragédia estava em suma na desigualdade racial, tanto que o ator Fechter. não encontrando sentido nas pala– vras de Otelo, à abertura da 2.• cena. no 5. 0 ato, quando representava o papel, tomava o espelho da alcova de Desde-– mona e mirando nele a 11m face escura, exclamava : •1t is tre cause I" (" A causa é est.a ! "). CPÃ"RT.F.~ BAUDELAIRE Cuidado ó minha dor, não sejas tão hostil. Reclamavas a tarde; ei-la que vem descendo :. Cobre a cidade toda uma treva sutil, A uns trazendo a inquietude, a out,os a paz trazendo, Enquanto dos mortais a turbamulta vil, Que o prazer, duro algoz, vergasta, vai colhendo Remorsos, nada mais, nesta lesta servil, Dá-me, ó do,, tua .mão; vamo-nos escondendo Deles. Vem ver as velhas éras debruçadas Das varandas do céu, em vestes antiquãdas; · A saudade a emergir das ondas, sorridente; O sol que tomba e sob uma arcada 11inha, E, como ampla mortalha arrastada no oriente Ouve, quelid".,, a doce noite que caminha. - ~usão !!R ~ !14 Almei~a}. .-.- . Era uma interpretação arbt– t:rária, influenciada pelo -pre– conceito da él)OCa, quando ee- 2':la mais difícil admitir, entre as chJmadas raças sUl)erlores. a uruao matrimonial de pretos e brancos. . Os tempos, porém, estão mu– dados : agora, é uma tribo afrt- ana que repele o seu rei i,c,r se- ter casado com uma branca, e. ex-datiló~rafa Ruth Wil– liams, moderna n ~.,riemona in– glesa. sem triigMia .. . Mas, admitindo-se gile Otelo (Continua na r - • ....

RkJQdWJsaXNoZXIy MjU4NjU0