Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1950
O CINEMA .AMERICANO ·E A MORTE Uma civilização n ão se de'fi– :n somente pelo quadro geral dos conhecimentos teóricos e práticos que ai se constata, l,"lo código moral e a furís– pntdencia em vigor, pelo grau de perfeição das balas-artes, d.-,s artes menores e das artes l:l'.1. vida, polidez, cozinha, hí– t' ~ue, enfim, pelo número, a c,1versidade, o poder das in– , 1strias e das técnicas, mas d : pendc também da maneira -,orno os homens imaginam a inorte, e o que ven1 depois, da J,1 aneira como são exortados a encará-la, das consolações em– rregadas para amenizar a dor <los parentes do defunto, da wrte que se prevê para este, além túmulo, segUJ1do seus rnü·itos e suas fraquezas. Daí, todas as civilizações, as mais 3 cfinadas como as mais ru– • ?s, encontram-se alojadas sob ;, mesma senha . A igualdade 1 os homens imp-~ por toda parte a mesma nêctssidade 1,cdagógica: ensinar o homem .i bem morrer. Eis, sem dúvi- 1 :1., o laço mais ten az que une R espécie à religião e à mi– tologia, laço quase impossivel ele romper. Nesse terreno inevitável o n ômade do deserto ou da sa– Yana, o caçador que mais per– dido se encontre no fundo da "brouse" africana ou das so– lidões dos Andes, pode tra– t ar, de igual para igual, o ha– bitante de Paris, <ic Londres ou de Nova Iorque. Aqui o mais desprovido alcança o que mais vantageru possui, despre– de, quem procura caracte:-izá• l:.i não espreitará em vão a co1-1duta que ela inspira a seus membros, em frente da morte. Um número restrito de :fil– mes americanos contém re– presentações do outro mun– do . São contudo suficientes pnra que se possa tirar deles várias constantes ltlgnificati- vas. Sem dúvida, certos dentre esseil filmes permanecem tri– butários das imagens do fol– clore ou da religião, relativas à morte e ao além. Assim, "O homem que vendeu a alma " nada. nos traz de funãamen– talmente diverso do que se encontra num filme europeu da mesma espécie, "La Char– rete Fantôme", por exemplo. Nos dois casos consti:.ta-se a. mesma utilização de temas, de situações, de personagens ti– rados dos contos populares. Aliás, o cinema tomou-os de empréstimo i n d i retamente, transpondo para a tela obras l:terária-s que se tinham pri– meiro apoderado delas. Não houve da sua parte criação original, O diabo do filme a – mericano, mercador ambulan– te, astuto e zombeteiro, nô– made de orelhas pontudas e mal •barbeado, maligno que encontra. quem seja mais má– ligno e mais forte do que ele é conhecido desde a idade média. Seguimo-lo desde os ''iabliaux" até aos romances de Dostoievskl e de Berna– nos. za-o, se é possível e demon~tra De igual maneira, a Morte, uma superioridade decisiva. que em outro filme, "A mor– Mais ainda, essa atitude di- te em férias", aparece sob os ante da morte, que congraça traços de uma espécie de as culturas na mesma condi- principe balcânico, belo ·tene– c;ão fundamental, traz também broso, de uniforme de opere- 11m dos elementos que permí- ta e pelo qual uma vivente se 1em melhor distingui-las. E' apaixona, se sua origem é me– por esse aspecto, sobretudo, nos clara, não constitui de cer– que através das singularida- to maior inovação, tanto mais des ~i~t~ric~s que as separam, que o disfarce permanece .P1!-– as c1v1liza,ot:s revelam o seu ra.mente aberrante e fantasti– parentesco e que, por exem- co. Não é viável e não pode plo, a analogia aparece indis- pretender a nenhuma estabi– cutivel, entre as sociedades <;n - !idade. De fato, nunca mais de os dois poderes, o espiritu- se tornou a ver esse jovem ai e o tempo:al, foram des- :oobre, melancólico e um tan• de o principio confundidos. to sinistro, no seu traje de ga– Nestas sociedades, o militar e la. Não corresponde a nada o religioso coin::idiram, em que se possa apreender, n o vez de se opôr, o devota-- prnndo que o produziu . Seu menta à pessoa do chefe e a caráter caduco e irremedlà– bra-vura no combate foram velmente estrangeiro denun– considerados como virtudes çia-o como uma sobrevivência fundamentais, a conquista e o ou um empréstimo. Em com– domjnio passaram pela r azão pen.sação, vemos afirmar-se de ser do Estado. O império em diferen tes :filmes uma mi– azteca, o Islam e a Alemanha 1.ologia coerenle e inédita . 'de ontem pertencem visivel- Procura-se em vão os elemen– mente à mesma :familia. De- tos de importaçã'> que poderia ve-se então observar que as conter. Par ece, pelo contrá– suas crenças prometem n o ou- rio, em perfeito a cordo com tro mundo precisamente as os traços gerais da civilização mesmas delicias sensuais à- americana de que saiu . Des– queles que necessidades se.me - cobre-se-lhe talvez aqui e ali lhantes lh es or denam honrar fon tes livrescas, mas estas se primeiramente e que se acha eneontram tão b em retoca– serem estranhamente idênti- das, refundidas e assimiladas cos, aqui e lá : o soldado qu e g· .e o resultado pode passar tombou de armas na mão e a por uma contribuição parti– mulher morta de p arto, o cular do cinema, traduzindo guen·eiro desaparec;do no de maneira imediata uma combate e aquela que perdeu sensibilidade n ova'. Se não as ~ vida dando-lhe um suces- inventa, é em todo o caso a 1,or. tela que 1ixa as represen ta- Pode-se pois admitir, que ções coletivas em que ela se uma sociedade E!!ja muito bem exprime e é também quem as pintada pela m aneira como difunde . imagina a passagem deste Desta vez, nada se conser– rnundo para o oulro e esse ou- vou do antigo "decor" nem da tro mundo também. Quando antiga figuração. Nada mais uma civilização nova conquis- de terri1ico ou desconcertan – ta a sua autonomia e pouco a te: nem o es~ueleto nem a p ouco alirma :,ua originalida- foice, nem o diabo de asas de ROGER CA8LLOI$ morcego, nem o côro de sera- buscá-lo no momento indica– ;(ins, nem os caldeirões fer- do nos r egistros oficiais. O ventes . Não se sobe mais ao infeliz é então enviado de céu, não se é mais precipita- secção em secção pai-a que se do no inferno. Trata-se ago- t ome a seu respeito a. decisão ra de domínios próximos, e que convém. Imagina-se bem inteiramente d o m esticados, que é dificil pôr tudo em or – desprovidos de todo elemento dem sem desen cadear compli– fantástico. Chega-se a um cações demais ou p er turbar vasto terreno ervoso, _que se uma contabilidade delicada . assemelha vagamente a um E ' Importante conservar-se na campo de aviação e de onde estrita legalidade, bem em re– sobe uma brumn que se torn a gra. mais espessa à mefüda que se Essa administração é aco– cam inha. Adivinha-se a través modaticia, mas integra . Abs– do n evoeiro as formas inde- têm-se de recon-er às falsifi– cisas de alguns "hangars" . O C'dções de escrita. Um erro defunto, ao que parece, n ão desse gênero e as suas diver– sabe que morreu . Em breve, tidas consequên cias fornecem porém, se ocupam com ele . o tema de "Le Defunt récal• Empregados d e boné agaloa- citrant" . do surgem em torno do re- O ouu·o mun do se apresen– cém-chegado; conduzem-n o ta assim sob um aspecto bu– aos escritórios, onde ele tem r ocrático que o aparen ta à de cumprir as formalidades realidade e a prolonga . De indispensáveis: íaz fila , enche mod o algum se encontra ai– várias fichas, enquanto um guém deslocado ai. Os fun– funcionário cortês lhe explica ciona1·ios são afáveis e com– qual é dali por diante a sua placentes. Nada de essencial c<:mdição. Mas pa1·ece já ha- os distingue daqueles com b1tuado: a mudança é illsig- quem cada qual teve de tra– nificante. tar durante a sua vida . Dei- Uma or dem perfeita reina xa-se de depender de uma ad– nessa administração gigantes- :rrúnistração para se tornar ca . Contudo, uma vez por ou- dependente de uma outra que tra, pode introduzir-se um er- mal se distingue da primeira. r o . Por exemplo, em conse- Na vida, raramente se en – quência de uma confusão de tr a em contacto com os che– identidad e um indivíduo é re- fes r esponsaveis de uma ad– c-olh~do .a:ntes do termo pelo ministração extensa e com– :Cunc1onano encarregado de irplexa. Nunca se trata senão JULES SUPERVIELLE 1 Um apelo, um grito ' Longinquo, a bafado, ;Quase umperceptive;, 'Erra DO infinito Coração da noite. Do fundo da guerra, Do fundo da França, Expirando avança, 1 Desmaia, persiste, , Procura ganhar · Força e co.nsistência No espaço, procura, Com perseverança Um a poio à beira ))o silencio enorme. Súbi.Jo me escolhe E ca'la.-se em n1im. Sirvo- lhe de abrigo, , Sirvo-lJJe de Jeito, • Ajudo-o a acabar. Como conseguiste, · P ersistente apêlo, P assar o oceano, Entrar no meu tempo, ~ Nele demorar? De que labio humano, De que fundas trevas . 'Vens como expressão De última l'Ontade? De que subterrâneo ' Ou de que retir o De lenta agonia ·Até mim te elevas. Lân11:nido suspiro, Y:lltimo suspiro? .. Pequenino apelo quase a perecer, Acabou-se a guerra, A Fran~• re•asee: Polle,ás já &KOra €eder ao silencio, .l)eillar-te morrer. \ e maneira, é excepcional en– com subalternos . De igual contrar -se a. morte em pessoa. Isso acontece contudo num filme mais ambicioso, que r esponde, aliás, a uma inspi– r ação direrente . "L'Etrange :su.rsis". Mas será mesmo a Morte, essa personagem dis– creta, de uma elegân cia seve– ra, correta ao extremo em suas palavras suas manei– ns, cujo aspecto é um pouco %rio e que um menino, dese– joso de prolongar os dias de seu avô, conserva prisioneiro numa árvore'! Seu ar é tão modesto que o tomaríamos antes por qualquer inspetor em excursão pelo seu distri– to . Seu cativeiro confina aliás n uma catástrofe. Ninguém morre mais. Todos os que i;er– rnanecem com suas chagas, suas :feridas, suas doen ças, oo– frem, sem poder encontrar um têrmo ao mart!rio intole– rável. Finalmente, o menino e o velho consentem em mor– rer . Libertam o prisioneiro e este, sempre serviçal, leva-os para a serenidade decisiva ou como diz, para os lugares "on– de cresce a. madresilva" . E' assim que o avô definira a morte a seu neto, que lhe per– guntara o que ela era . O inferno não é menos hu– m anizado. Em " O diabo. dis– se não", Satã parece Um pre– sidente de conselho de admi– nistração, confortavelmente instalaão num gabinete de di• retor. Carteiras, em torno de– le, regurgitam de " dossiers". Dá or dens, telefona, dita a sua correspondência a secretários atentos. Elevadores l uxuosos :fnem subir os defuntos até a i;ala de espera; Satã mesmu se mostra de boa vontade, com– :i;>1eensívo e indulgente . N~m tf:ntador n em carrasco, co-;n:> quer a tradição; é um buro– crata simples e n o qual o ob– ser vador não d escobre nenhum indicio de maldade. No ce– mônio tradicional, não con– s<:rva mais do que uma l.J,rr• bicha pontuda e sobrancel11as arqueadas. Aliás, não :tce!ila facilmen te as gentes n o a u inferno; por pouco que nao 1recusaria com alegria muito fit'monstrativa as candidi,m– .r.. s duvidosas . .Aplica p elo n,;:– llOS, sem a menor seven daci'!, a legislação em vigor . E' ;,s– sim que repele com ! irmeza o beroi do filme, pob!·'! !lo– mem, n em bom nem mau, co– n•o a maior p a::te da gent,t', e que se julgava m ais culpado do que era . De modo algum esse diabo enladonho e cheio de mansuetude pode passar pelo "Maligno " . J uiz que nem t.cmpre encontra matéria :Pa– r<i condenação, funcio'!lário de emigração, determinando a sorte dos viajantes que 30 li• cit.am entrar a t itulo perm,l.– n ente num pais par a 'Jnde os envia um acidente obscur o, admite uns, recusa outros, de a cordo com as possib1lid..des e segundo os artigos de um re– gulamen to detalhado . Um filme recen te, "A teli– cldal1e nã:o se compra " , apre– senta um anjo da guarc.a no exercício de suas 1uni;õe;, . Es· tá animado de ambições mui– to humanas; aspira a um grau superior na hierarquia celes– te . Confiam-lhe, para experi– mentar seu médto, un ,a mis•· TRADUÇAO DE MANUEL BANDJ:";mA l são difícil da qual, aliá5, ele se desempenJ1a ótimamente. ___....;________________________ Sob a f01·ma de um valhinh.o cordial, torna a dar '> g1,sto, da existência a um d;?sespe– rado, provando-lhe que sua vida não foi inútil e que sem o saber, conquistou muilos a– migos suscetiveis de vir eru seu auxili-0, no lance (!i.ficil.1 em que se acha . P ar a es~e , fim, pilota o seu protegido na' cidade em que h abita: esla. l modüicou-se imperceptível- ) mente, apresenta-se ao inleliz. tal qual seria, se el~ nunca, 1 ivessc existido . Consta.ia <m--' trio como teria sido diferente o des\lno dos que conlrnc·eu, ou que encontrou si".'nples– mente: parentes, amigos, vi zinhos, ou indilexentes. Ven. do de que modo as coisas se i teriam desenrolado, se tJe nãol tivesse estado lá, entrtvê oi lugar que tem entre sens 1;e- 1 melhantes e· o valor insuspei- l toc:o · dos serviços que l hes l J11 estou, pelo simples fal'.l cle J viver n o meto deles. Com– preende que está r ode'ldo oe / simpatias e renuncia ao s,ü– Giãio . E o an jo recebe cs ga,.. ,úes cobiçados . Esses po•il OS exemplos per. mane.cem dispares e l'emt, grande alcance, Não pr,::,vêm.i de cer to, de um fitndo com– pleto, coordenado e unãni.,ne- '. ,i:ente reconhecido pei11. cons~ clência pop ular. Contud'.l, nã parece que se encontrem · a caprichos agradáveis, iimples 1antasias individuais. Como / t>lCl!to estas obras aprtsw tsi:-nJ uma semelhança incontest5.ve1' na jnspiração e nas i.m:Jgcn:::.: Respondem a um mesmo es- J tado de espirita dos vivlis e j tendem a impor -lhes a mesma.\ 1·,.presen tação da exi~têur;a.1 após a morte . Exprimern el ilustram as n ecessída1,?s co 3 ml.!lls de · um público que a l:.1 ange a quase totalid1de dai população de um dos !naio-,, ) rc:, Estados do mundo. E ' isso d izer que essa re- 1 p·:esentação não poderi:1 ser , a:· b i1Eária . Na' ·realldadc.-,1 transpoe, não com exatidão, i o comportamento dos :.nneti• j canos em relação à morte. E::1> µais algum, sem dúvida, terni eE la tão pouco lugar na ima- 1 glnação coletiva como nos Ps– t:i,dos Uuídos . P arece ali q·,a– se que eliminada . Aliás, \ U– do o que se desigM sob o :·,.1• me muito justificado de pom.- 1 p_as f ún ebres é aqui desconhe- 1 c1do. O velório, a retirada do corpo, a in umação r ealiza?r.-se; c~m, uma àiscreção extraordi-i naria . O despojo mortal é t>n• tregue a uma comp anhia .-.s-l pecializada que se ocupa a.. tudo. Ela o Instala numa saia. dlsposla para esse :fím, õe modo que a :familia e os co– n hecidos o possam sa;iciar uma última vez, n as melhores ' condições. As mais das veus ' o aspecto dessas casas .'! :.,:iis, atraen te do que aflitivo· às vezes são iluminadas 'pur rampas de n eon que os pro!a• nos tomam por "boites" e a... contece que admitem um bar. - o que permite, àqueles que v êm cump_rlr um dever 5!Jclal pouco atraen te, mudarem de idéias e se reconfo1·tarem. Em Los Angeles colocam-se de bom grado sobre os túmulos cópias do an tigo: Apolo e Ve– nus de mármore têm por fim tornar mais sedutora a idéia da. morte . A educação é dirigida no mesmo sentido . A morte n ã o é de temer, n ão d evido a uma · {Continúa. na ~- pãgína) Natureza Do Sentido Musical o livro do sr. André Cuveller "A Música e o hemem, rela.tividade da cousa musical", da série Biblioteca de Fi– losofia Contemporânea, edição das "Presses Universitai• res", suscita muitos problemas e oferece um grande ln• teresse aos que apreciam a. música.. De fato, entre esses apreciadores, muitos querem saber como e porque al– guns sons reunidos nos permitem uma evasão para ,fora de nós mesmos, atingindo regiões sob o domínio exclu• &Ivo da beleza e da pura emoção . Que caminho sutil per– éorrem esses sons para. assim falarem à nossa alma? Que será. esse maravilhoso fenômeno ? Não é possivel seguir os desenvolvimentos que enchem as 300 páginas do li• vro do sr. Cuvelier nas poucas linhas de um artigo. Li– mitemo-nos a resumir-lhe as conclusões . Depois de ter exposto os dados de um problema que <!iz respeito à :fí. sica. à fisiologia, à psicologia, à metafisica e à estética, mostrando a sua extraordinária complexidade, o autor levanta uma espécie de balanço dos conhecimentos po– sitivos acumulados no decurso dessa verdadeira explo• r ação . Ao mesmo tempo traça. os limites entre o que po– de ser definido com certeza e o que fica, em última aná– lise, impenetrável.. O que mais perturba o :filósofo que se preocupa com o "mistério" musical é que ele, de inicio, constata a relatividade de todos os element os cujo con• junto constitui a "causa musical", a part ir da vibração d?, molécul a do ar, antes que o ouvido seja por ela afe– tado, até os mais sublimes êxtases da alma . "No espaço e no tempo, de um llomem a outro, e para o mesmo ho• JPem, no j l'anscurso da sua l!!da, a rnÚ$ica é matizada REh#E' -ouMESNIL por uma extrema relatividade" . Antes, portanto, de elaborar uma teoria geral sobre ela é preciso tomar con– sideração desse carater essencial. Nunca se encontra um terreno sólido e definitivo, tudo é relativo. "A. invasão da lnteli~ncia nesse dominio primordial do sentimento, assinala o autor, não é um dos aspectos menos curiosos dessa criação continua do homem, que se constitui pou• co a. pouco, por uma espécie de desvio do instinto, nu. ma linguagem espiritual e ideal, tão bela na sua impre– cisão, quanto frágil , arbitrária e efêmera" . De fato, a música teve, desde as civilizações primitivas, uma evolu• ção mais considerável que a de todas as outras artes. Elevou-se de uma simples sensação até o sentimento e deste à espiritualidade, atingida pela música pura. As– sistimos, no decorrer dos séculos, à invasão continua da inteligência no domínio da mat éria musical . A evolução do espírito teria por consequência tomar a. música pura acessive1 e agradável a todos, compreendida e gozada intensamente por todo o mundo e não apenas reservada a um:i. memória . Mas admitir isso é concordar que a. música está na vanguar da de t odas as outras faculdades desin teressadas do homem e que ela atingiu o seu ponto de :1.egada . . Essa hipótese é, no entanto, dificilmente compatível com o fato de formar a evolução um t odo. Irá a músi– ca se complicando até o excesso ou antes as gerações futuras irão assistir a uma simplilicação semelhante à que foi sonhada pelos "nuove musiche" de Florença, no começo do século xvrri .Queria el ·"P.Udiar as coni- plicações e sutilezas da poliformla. fl.OS contrapentistas, voltando à pureza da monodia antiga. Quem se anima– ria a afirmar o sentido da evolução da música nas ida– des futuras? O que ressalta da leitura do livro do sr. cuveller, é que a relatividade da cousa musical, "propt.er natura hominls", faz com que a música concebida pelo homem, só tem sentido e valor para ele próprio. Acres– centamos, por nossa conta, que só tem valor e sentido para os homens de. uma mesma époea, porque é t ambém uma rel&.tividade "propter personam suam", o que faz os homens se distinguir em uns dos outros no tempo e no espaço, tornando cada um deles uma criatura única e original. O riso que Molíére provoca é o fruto de senti– mentos q.uase idênticos entre todos os espectadores, mas a música acarreta uma infinita variedade nos seus efei– tos porque atinge ainda mais o fundo misterioso e múl– t iplo do sêr, movimentando impulsos menos uniformiza– dos do que os do pensamento e da emoção literária . Está mais intimamente ligada ao fisiológico em cujos mean– dros mergulha e cresce. A emoção de ordem musical se aproxima da que tem as suas raizes num sentimento afetivo. Mas, só pock ~...r provocada por circunst âncias peculiares a cada indivi– duo e uma certa e determinada música desperta. em cada um de nós, aciden talmente, recordações inconscientes, ~ nbos adormecidos no esquecimento diferentes para cada individuo, Ela é, antes de mais nada, efusão e liberta– ção. o poeta já o havia dito antes dQ filósofo: ela t ~ aeln do amOl'.
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