Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1949

ARTE Pará-Belém • Quando mais amanacto pa– ll'ecia à minha mesa de tra - 11:lalho, andava tão longe, que ~em eu mesmo seria capaz •~ en~ontrar o meu rastro. Hà uma porta falsa, uma saída ,!Pelos fundos, nesses momen– tos de aparente resignação à iinércia . No imenso território da fan– Jtasia, o mais difícil é escolher 11.s rotas estelares, as nebulo– sas propicias à criação de um novo mundo . Muitas vezes parei, à soleira -da imensi– dão, de ouvido à escuta, son– dando itinerários, com medo de escolher. O primeiro pas– so determina a escolha de um rwno certo e risca uma seta :indesviável - e escolher é sempre fingir que não quere– mos outra coisa ... O' hesitação, rosa dos ven– tos, um dia cantarei tua ver – tigem fecunda, num poema _Bilencioso, só dos lablos para QS lábios . . . • * • Basta a simples mudança de temperatura para transpor– tarmos a distancias enormes !Mi tempo, anUlando a prisão d-0 momento. Que é o presen– te ! Um grosseiro engano da consciência, ialvez, como o , passageiro no avião, sem pon– to de referencia, considera en– tre dois cochilas: amarei nas nuvens ... • * • DO noo. Em vão concentro sobre vós todo o poder do meu si– lencio, mordendo a lin~a– para não insultar \"OSSO m!S– tério tão doce . Fazei de '.!0n-: ta que hoje ê feriado nesse pais absurdo em que morais sob · o mau gosto crú dos mármores, considerai que um grão .de humor iámal.~ per- .- l ' 1 Domingo. 24 de Julho de 1949 AUGUSTO MEYER .,,_,.------ ~ ---- · t LITERATURA AZUL No . 128 Não te aetêm as distancias, O' mariposa ! e i:ias tardc5, Avida de luz e chama, Vóas para a luz em qae arde& "Morre e _transmuda-te": en- lquanto perada? Mariposa consciente, Não cumpres esse destino, bem sahe que a chama em Es sobre a terra sombria derredor da qual gira e regi- Qual sombrio peregrino . turbará vossa Imaculável dig- mos de muito perto, :10s ce- ra a sua vertigem, será para • * • nidade . ga . ele a morte, a treva, o hor- Impressão de transborda- • * • • * • r or essencial de um destino mento a cada instante, a rea- Quanto maia nos individua- Mas quem será este . Eu, já cumpri.do . Outra coisa se- lidade mais !orte e mais ãg!l lizamos, tanto mais nos per- dentro de mim, que anda a ria morrer e transmudar-se do que qualquer forma inter – demo!!; 0 centro luminoso que procurar o clima cruel da ela• como no poema de Goethe, preta.tiva. . arde em nós, quando O fita- rivtdencia. da lucidez deses- que tão bem traduz Manuel E depois ? pergunta alguém Bandeira. dentro de mim, ao cabo de ~~-<::><~::>'~~~.-<:::,,<;~ ..-;::::,.,~.s;:,~>.-<,;:;n~:;:;,..,.-;::,,c:;::,.,:;;:><.;:;..<;-;..,,q_ cada, página lida . . E depois ? AMAR • Era só isso ? Para falar verdade, -o que fica e afinal é a intuição de t er sido vagamente iludido pelo autor. E depois ? • * • .. - .. \.. . . - QUE pode uma cnatura senao, _ Recordacão: na tampa da entre criaturas, amar?, amar e esquecer, mnar e malàmar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar? • caixinha de música, a ima– gem que ainda vejo. A beira do lago, onde o fundo de al– tas arvores se reflete, um ,•ui- to claro de mulher. A pobre, • a triste, e ãcida musiquinha põe estranhas ressonâncias na 1 sala; o crepúsculo apaga o meu d-esenho. Nave!l'Ue! muitas vezes no lado da paisagem estampa– da na caixinha de música : era o ·lado de lá . Profuncl a- a • sombra das margens, negra, · Olhos abe1·tos, estrelas tei– mosas, todos os fogos do . , mundo estão acesos dia. e noi- Que pode, pergunto, o ser amoroso, sózinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? amar o que o mar tr.az à praia: _ Hsa, indevassavel. A ba1·ca andava e não andava naque- 1 ~ remanso fora do tempo . Mais tarde. reconheci tudo aqUilo, de golpe, na "Invita– tion ou voyage"; mas o poe– ma parecia-me a tradução ín – ·n el e um tanto convencional do nústério da caixinha de música. Há só uma "Invita– tlon ou voyage" dentro de nós, a primeil'a, a autêntica; as outras. que vêm depois, não conseguem atinl?ir o re– manso do lago Interior. onde começa o nosso lado de lá. te, numa prontidão inquieta. . w,orque a treva é imensa e do éiutro lado de tudo está o na– Ide. Momento ideal para sen– tir a irremediavel solidão em que vivemos inconscientemen– llle, .mergulhados ; pensamos como um peixe acende no fun– do do abismo oceânico a lan– terna dos olhos fosfóreos, li– mitado pela sua própria luz . E entre a pupila que vai cri– ando· o aeu mundo ·e os ou– tros mundos de outro.<: olhos o que êl~ sepulta, e ·o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor ou simples êm,c::in? Amar solenemente as palmas do deserto, .o que é entrega ou adoração espectante, - e amar o inóspito, o crú, um vaso sem flôr, um chão vazio, Remexe longamente na.o; gavetas da memória com_ a. calma do arquivista. ·_ - distancias, distancias, dis~ $ancias ..• • * • · Nunca esquecer o lado no– t urno da vida, mistério inatin– Bivel; um mundo expllcado ~ mundo morto. Porque sempre e sempre se impõe a r etlcen-. cla. é que vibra de novo sen– tido e renasce o dram a do •l)ensamento . Anda nisso a lei .da luta criadora. Quem aa– l>e, Horãcio? Talvez a razão •" tenha razão quando se de– l >ru.ça sobre o delírio de si mesmo, para duvidar de. pr 6- ~ria imagem.. . e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina. Estampas roídas Pfllo tPdio, pros.peetos. calendários. chei– rais a. cânfora e solidão . Há muito secou a tinta f1•esca dos poemas e todas as ·palavra!'! pararam, mortas de medo e vazio. O absurdo é mais for– te, o mistél"io é tão vasto, que é melhor não pensar. tste o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nwas doação ilimitada a uma ·completa-ingratidão, ·e na concha vazia do amor a procura me<hosa paciente, de mais e mais amor, Mas as fichas amarelecldM .têm a dignidade dos velho!l almanaaues . Lua nova a . . . ...E .-a lua de · sempre. redonda e intacta, sobe n-0 fundo da. lembra-nca. inundando os Cl\– minhos da aventura. Eu vou • * • i Queridos mortos, descei des– isa.s moldum.s solenes, mostrai ()fl vossos dentes. p ecai novo.<; IJ~cados, 00,íninhai, caminhai ! Assim não podemos en1ender- Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, o beijo tácito, e a sêde infinita. partir. · E' em vão aue os anos ro- . laram como seixos sobre mim, ca1ram n9 insonda.vel pof;O dos ·meus ~anhos . A2ora e cada vez mais. até à última. vial!'em CABLOS DRUMMOND DE ANDRADE · ·sem regre;;so, eu vou partir..•· 1. NASCEM VAROES · Desde o quarto crescente até a lua cheia o mar veio 8Ubh1do de fúria até uma grande festà desesperada de ondas imensas e espumas a ferver. ·Vi-o estrondando nas praias, arrebentando-se com raiva nas pedras al– tas. O .vento ei;a manso, e depois do sol louro e alegre ,vinha a lua entre raras nuvens de leite; · mas o mar !feio, crescendo de fúria; e as mulheres de meus amigos ,iue estavam grávidas, todas deram à luz meninos. Sim, n asceram todos varões. _ Nascem varões. O poeta faz um ·poema seco e tris- -r te . Disse-me; quando crescer, ele não o lerá, ou então ,ião poderá entender. O poeta· contempla coni inquie– !1',ação e melanc9lia os varões do futuro. Não os enten– tle; sente que neste mundo estranho e fluido as vozes podem perder o sentido ao cabo de uma geração; en– tretanto faz um poema. Sinto vontade de romper esse mo1aento surdo e solene em que mergulham9s; ora bo– las, nasceu ·inais um menino. Afinal os meninos sempre 11asceram, e inclusive isso é .a primeira coisa que costu- . mam fazer ; ·aparéntemente e~a história é muito an– tiga, e talvez monótona. Mas estamos solenes. As mães olham os que náSceram. Os pais tomam conhaque e _providências. o mundo continua.. RUBEMBRAGA .lCm1--ni2ht E. S. 1., cem e:s;elnsmdade pàra a FOLHA VO N6RTE, nest~ Estado) o que talvez nos perturba um pouco é ·esse sentimen– to da continuação do mundo . Esses pequeninos e vagos animais _sonolentos que ainda· não enxergam. não ou– vem, não sabem nada, e quase apenas dormem, cansa– dos do longo ti:abalho de nascer - _ali está o mundo continuando, insistindo na sua peleja. e no seu gesto monótono. Nós todos, os hçmens, lhes daremos nosso recado; eles aprenderão· que o céu é azul e as árvores são verdes, que o fogo queima, a água afoga, o automo– vel mata, as mulheres são misteriosas e os gaturamos gostam de frutas. Não lhes ensinaremos com nossa voz, nossos papeis escritos, nosso medo e nossa força, nós lhes ensinaremos muitas coisas, das quais ·multa.a erradas e outras que eles mais tarde verificarão não ter a menor importancia. Este lhes falará· de Deus e santos; aquele da con– 'leniência geral de andar limpo, ceder o lado direito à daoa e responder a cartas . Temos um. baú imenso. \!heio de noções e abusões, que despejaremos sobre suas cabeças. E com esses trapos de idéias e lendas eles se cobrirão, se 1:n!eitarão, lutarão entre si, se rasgarão, se de-s;prezarão e se amarão. Escondidos nas dobras de bandeiras e .flâmulas, nós lhes t ránsmitlremos, discre– tamente, nossas perplexidades e nesso amor ao vicio; a lembrança de que todavia não convém deixar de ser fe– roz; de· que o homem é o lobo do homem, ·a mulher é o descanso do guerreiro, frases, milhões de .frases, o es– petáculo começa quando você chega, um beijo na face pede-sé e dá-se, se quiser ofereça a outra face, se o 1uerreiro descansa a mulher quer movimento, os labios ,ivem em sociedades chamadas alcat éas, os pei~es são - cardume, desculpa de amarelo é friagem e desgraça .pouca é bobagem: Armados de tão maravilhosos ins– trumentos eles · empiriarâo seus papagaios, trocarão suas caneladas, distribuirão seus orçamentos, amarão suas mulheres, terão vontade de mandar, de matar e, de vez em quàndo, como nos acontece a todos, de 110$– ,regar, morrer. Penso nessa Jovem e bela-mãe que tem nos braçoc seu primeiro filho va.rão. E o quadro eterno, de insupe• .tcontm~ na l". Paii,>

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