Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1949

11. • á FOLHA DO NORTE Domingo, 10 êfe julho ele 1949 v. P g. · 1 ,;__-=-: _~..::.:.,:___________________'--______________________---'-_____ __----:-_______ / MARQUES REBELO E /A CRITICA ALVARO LINS: .,. A. especialidade criadora de romancis– ta de Marques Rebelo continua a se diri– gir para os personagens femininos. Depois de Oscarina, a Leniza de "A estrela sobe". De tudo que é realmente vulgar Marque§ Rebelo consegue realizar uma obra aristo– er-.i.tica. As palavras descem à gíriá, os diálogos se abai.\:am para exprimir tipos imbeci.a ou secundários, as cenas se humi• lham para revelar nm ambiente pobre e comum - tudo desce, mas a arte do ro– JUancista, não ! Dai é que se deve começai· para sentir, menos do que para compre– ender a estranha psicologia de Leniza. Ela mostra que o Lema mais fascinante de um personagem de romance ainda é o bo– Ya.rismo. O grande tema de Fla.ubert con– tinua a ser fecundado em todas as dire– ções. Leniza, porém, ~e diitingue do tipo elissico de bovarismo pela sua complexi– dade . Ela não se conhece a si mesma, e nenhum· de nós será capaz de conhecer in– tegralmente essa criatura incontrolável. Nunca ela realiza o que esperamos dela; será preciso acompanhá-la como a máqui– na de surpresas . Quando espera.mos de Le– nlza que acabe se entregando a Oliveira, ela :,e sacrifica friamente à concupiscência do repugnante Mário. Quando esperamos que tenha wna reaçã.o de coragem, ela chora. e se humilha como uma criança. Quando esp-eramos que esteja vencida t)ara sempre pelo infortúnio mais pesado, ela 1.urge co– mo se nada houvesse acontecido . Então, o próprio romancista toma-se de perplexida– de e perde-a de vista . Perde-a de vista quando ela vai se encaminhando, "oo pas– SOII mais firmes, sempre mais firmes, para a Continental". · Pelo que há em Leniza de contradição e desequilíbrio - Leniza-),lem e Leniza– Ma.l - ela corresponde ao tipo ideal do personagem de romance. Um personagem anti-natural, mas que se im.põe através de recursos naturais. Um per.,onagem desco,n– certante e sensacional, mas coniitruido com esta holll!stidade que é a do verdadeiro es– critor: a de se revelar no seu próprio esti– Ie, 11em nada sacrificar de si mesmo àa COli!lclerações do sucesso. lll1t· "Notas de um diário doe Cl'itica") • • • MARIO DE ANDRADE: · A originalidade quase virtuosi~tica de M . Rebelo consjste no simultaneismo siste– mático da sua ex.pfessão nterária. E' opinião já muito repetida e verdadeira que ninguém no Brasil sabe dialogar atualmente como o 11utor de "A Estrela Sobe". Neste livro re- cente o escritor atinge no diáloko uma per- . feiçã-o assombrosa .- Não se trata de nenhu– ma rnü:açao da natureza, não. O que ma– ravilha m.a1s, a quem a11alisa com atenção os diálogos do romancista, e justamente a "falsidade" artística deles. Tudo vibra, ne– nhuma palavra é vazia de sentido, todas as expressões caracte-rizam CliS indivíduos em tudo o que é um individuo por dentro e por fol'a, em si mesmo independentemente, ou em relação aos outros e ao mundo exterior. Riqueza bem &propositada de modismos, frases feitas de uma espontaneidade palpi– t ante, as pequ~nas muletas normais do dis– curso · colocadas com uma sugestividade e um colorido ·encantadores. E com toda es– sa escolha eminentemente artistica -Marques Rebelo consegue criar diálogos de uma na– turalida<ie espantosa, em . que toda a ri– queza expressiva intenci<mal, em que •toda a "falsificação" que é a transposição para o domínio artístico, nada tira do sentimen– to vivo de realiqade em que ficamos. Com a beleza a mais. E' exatamente aquele real mais verdadeiro que a própria realidade; que só a grande arte consegue nos dar. Mas si a dialogação é a melhor quali– dade éx.pressiva de Marques Rebelo, não . será porventura a sua maior virtuosidade técnica, O artista entrelaça os seus diálo– gos com passagens descritivas em que to– dos os elementos · de expressão verbal são utillzadOB, sem prefel'ência por um só. Ge– ralmente frases curtas que se sucedem, sem a elasticida<ie admirável do fraseado de Raquel de Queiroz, mas com uma rapidez rítmica estonteante, tim verdadeiro simul– taneismo. Reflexões de autor, pensamentos de personagens; seus cac_oetes de . :reflexo, notações de ambiente, de traços f1s1cos, de sentimentos, tudo se ajusta, se entrelaça, se contraponta, fo1·ma contrastes, reforços, rea– ções, cosfirmações, como uma verdadeira chuva de imagens multicoloridas. E nes– ses rodamoinhos de elementos expres– o'IVO.S diversos, si a ação parece VIgu• rar, na verdade o que sobe à tona do interesse são as almas. Essas almas mais ou menos desfeitas dentro da vida, não determinadas por um verdadeiro sen– tido de classe, malandros, sambistas, gen– te de rádio, aposentados, que o romancis– ta descobriu na suá cidade pra os descre– ver. E ele, os caracteriza dentro do seu in– caraoteristico social, os aprofunda em sua desorganização moral, com uma perfeição esplên4ida. E' poosivel reconhecer que a grattiida– d~ psicológica dos personagen! do roma1,~ císta não tem a profundeza de sentido da mesma gratuidade em Machado de Assis. E' uma gratuidade proveniente mais de uma vagueza de classe s_ocial que os deixa assim disponíveis psicologicamente, e de– pendentes da primeira esquina do sen– timento oú das necessidad-es vitais._ Machado · de Assis foi mi.is longe na. verdade psicológica em si, incluindo no pre– fixo das suas almas que citei, o gratuito, o reflexo fisiológico, as aparencias. de li• berdade· que devem ser _apenas o ainda inexplicavel' do ser. . . Nada. impede po– rém, que Marques Rebelo, embora fazendo psicologia em ação, seja um dos mais no– táveis analistas de almas, que temos a•tu– &lmente. We "O empalhador de passarinho") . .. * • SERGIO MILLIET: "Suite n. 1" é . um livro de viagem que poderia classificar-.e entre os livros de crônicas. Em verdade essas notas de um observador sobretudo inteligente primam pela leveza do comentario e pela elegancia do estilo. Marques Rebelo é um escrito1· que não aborrece nunca e que, porisso mes– mo, muita gente apressada considera su– perficial. Mas, em compensação, há uma certa unanimidade na assertiva de que es– creve a.dm.iravelmente. O escritor tem, po– rém, uma qualidade mais precisa que AI– varo Lins assinalou neste "Diário de cri– tica" que tenho em mãos: "De tudo o que é realmente vulgar o sr. ·Marques Rebelo comegue realizar uma obra aristocrática". e talvez seja essa a caractél'istica principal do autor de "Suite n. 1". Outra, quase tão importante, é a discreçã.o sentimental! o pudor tão raro nos cronistas e nos escrito– res ditos "leves". A leitura de seu· liv1·0 de viagem por ~s Geraú me leva mesmo à. convicção de que é por pudor que Mar– ques Rebelo "se faz leve". E não P?r )~– viandade. No fundo os problemas mais se• rios o perturbam. os grandes dramas so– ciais o preocupam, mas ele .apenas tem de leve nessas coi1as todas em virtude mesmo dessa aristocracia natural, e dessa discre– ção que o afasta violentamente de todas as demagogias, inclusive a literarla. Com aque– le arzinho de piada vai ferindo os aspectos dolorosos da cultura cabocla, estigmati– zando sem dó os prefeitos poliHqueiros, aplaudindo as boas obras e se enter• necendo com os poetas. Sim personali• dade lembra-me muito de perto a de An– tonio de Alcantara Machado, de quem "foi a.migo e que o apreciava contra tudo e contr:I quase todos... '> Os homens como Marques Rebelo e Ant-0nio de Alcantara Machado, só por descuido se descobrem. Uma auto-critica vi,:'orosa lhes defende o poder aristocrático. Mas os descuidos felizmente existem. E de repente a gente depara em sua prosa mui· to sólida na sua leveza, explosões como esta: "A vida é bela pelo que tem de sim· pies". Eis ai toda uma estética e, o que mais, toda uma ética. (Do "D:ário Critico" - 2o. vol.) AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO: Em Marques Rebelo o conto é vivo, e, mais que isto, é um episódio da vida. Sem dúvida, para um espirito fino e ágil como o seu, a vida é complexa, tem aspectos in– ternos e externos, . é visá-O e sensação, mas é pensamento e sentimento também. Pa- rece contudo que aqueles dados superam a. estes, embora os não excluam.· Visualista. Rebelo, é, antes de tudo e mais que tudo. O aspecto visual dos ambientes e das pes- soas lhe interessa não de maneira super- · ficial, ma.s de forma imediata e profunda•. Tem uma irresistível tendencia para nos mostrar como são os seus he1•ois - o ca- belo ruivo de um, a cara pintada dê sardas de outra, as mãos picadas de -agulha de Stela, as coxas grossas, os seios nascentes : · da mehina que se fazia moça. - Nada lhe ~scapa, nem a mobilia usada, triste na sua banalidade utilitária, das casas da peque– na burguesia carioca (seu meio preferido)_ , , , .. nem os jardins com bancos, nem os ana-. crônicos côrregos que atravessam a via pú- . ·; J blica com pontezinha·s (esta.remos no Era- · '· 1 sil-Reino ?) nem as roupas ridículas dos · cafajestes de hà vinte anos, minuciosamen.- · te descritas, nem as estradas sombrias e_ ·. orvalhadas da sua familiar, da sua querida. Tijuca. Porém, Rebelo, é claro, não se .sa– tisfaz com - as simples descrições, muita vez magistrais, destes ambientes. Sendo um . visualista é também um sentimental, mas : . como é muito inteligente, tem pudor de · seu sentimento, esconde o que nós cha~· roamos "mozarlismo" sob a capa defensi_~ va da ironia, No fundo o irônico do tipo . Rebelo é sempre um sentimental inteligen~ te que esconde a lágrima ao canto do olho com um riso escancarado. E, ne"' le, este riso não é ofensivo, porque Rebelo se ri tanto de ·si quanto dos outros-. · ' Mas voltemos ao que acima se dizia, isto' é, a lembrar que os ambientes não satis··;, faz~m completamente a este visua.is ,ta. F/ ' preciso que neles haja vida, é verda-de que nada mais além dela. Vida sim muita, vi- da mas somente a vida. E' .espantoso co- m~ tudo o que está além da existência, na. sua significação mais imediata, é comple– tamente ausente da obra de Rebelo. A p-rópria morte dos seus personagens nã:J_ lhe interessa, ·senão muito de passagem.– como se fosse um episódio da vida del~s. 1 Em tcdo caso um simples ponto de referên- cia uma data uma posição, para falar soh,re qualquer' coisa da vida deles. Será que o f!l,bricante de drogas farmacêuticas, sr. Dias da Cruz, sem dúvida o amigo em quem Rebelo confia mais, lhe terá! como (Continúa na 2". Pag.) -------------·-----------------'---------------..:.....,-------,--------------------------------<,.- Encontram-se pelo meio da tarde no jardim. Era sábado• José estava de folg·a. Ela chegou apressada, sa– pato sem meia, um vestido velho de filó. Fôra uma fu– C-APITULO gidinha só. Não podia demorar. Dissera ã mãe que ia D telefonar para a Zuleica.. , mesmo, pensava, não era ne- . e sócio encontrar-se com ele ali na rua, não. . ' 'Maiafa' ' - Por quê? Não tinha nada que saber. Não lhe conviDha, es– va acabado. José tremia, desejoso, vendo-a assim à frescata, o cabelo despenteado, os braços nus, a carne querendo fugir pelos buraquinhos do tecido·. _ - Então, como vai ser·? - Ora, -seu conquistador, muito facil. Se você tem Interesse, vá lá em casa. - Mas tão cedo assim ..• - Eu estou dizendo: se "lhe" interessa ..• Jose riu, prendendo a mão quente, um pouco ás- . fera, que se despedia. Ela lutava: - Me deixe ! Estou com pressa. - Então, é assim, não é ? - E' ·assiín, sim. Mas me deiie, José. Tenho que Ir, já disse. Não posso ficar mais. Largou-a com um sorriso de ternura: - "Me" interessa, sim, sua apressada. Vou _hoje Desmo, posso ? - Pode. - Você me espera mesmo ? Olhe lá ! ... - Por que você duvida? :&.pero, sim. E riu: m'l\is lrme que ..o Pão de Açucar ! - 'As oito, está bem ? - Está. - Pois então até logo. Ela voltou-se, num sorriso brejeiro: ~as com uma condição. . • e ameaçavA-o com o dedo. .lá sei. Rasoar o bigodinho antipático. ... _ FoL A noite estava muito calma e muito azul. Sussuca aguardava-o preparada no 1>0rtão. Fez uma mesura: - Boa noite, rapazinho de palavra. riesse ... Pensei que não - Me acha com_cara de caloteiro ? - De caloteiro, não. Nunca achei. Nunca ! com cara de outra coisa .•• - O quê, meu bem? -Ah! segrêdo .•• e gargalha'fª· - Olha, que assim você me encabula .•• . -Você? .•• - Eu sou muito encabulado ..• - Eu sei. .• tomou-lhe a mão, arrastou-o. _pai l c!entro . ;José não queria: Acho Vem cá -Para quê? Aqui se está tão bem, Sussuea .•• -.Está o quê! Frio constipa. · -Que frio?! - - - Vem - e sorrindo - mesmo você precisa eonhe• cer mamãe ..• Conhect:u Sussuca numa festinha em casa dum ami– go. Tão simples, tão alegre, gostara dela. Perderam– se na varanda uma pa~ da noite. Fazia uma noite linda. ' -Não acha? Ela a~hava tôdas as noites ipa.is. Por quê, era se– grêdo. Tinha muitos segredos. O vestido escondia os pés. Apoiava-se nó peitoril, os braços nus, as espáduas auas, os olhos moles, um ar d_ç_ ave cansada, tentadora. - Poderia vê-Ia ? Ela não respondeu. Olhava o céu. A valsa é mste. A. lua bóia. - Sábado, está combinado? . Era quinta-feira. Ela, rodopiando nos compassos dum úitimo foxe, ofegante, duvidando, prometeu que &im. A mãe veio, gorda, num abdar de pata, enxuga~do as mãos no avental de xadrezinho. Tinha muito prazer· em conhecê-lo! Desculpasse por não lhe apertar a mão~ · !l'inha a sua molhada. Estava na cozinha. Deu-lhe- o punho. Sussuca ,corou, explicou: - Não temos empregada. _ Dona Nieta desculpava-se mais: não reparasse na casa. Tinha uns olhos bondosos, uns modos simplórios. Iria fazer um cafézinho. - Muito agradecido, minha senhora. Não se inco• mode. - Não. Não é incômodo nenhum. E' :um prazer•: 011 prefere um licorzinho ? Aceitou o café. Dona Nieta sumiu: - E' um minutinho. O minuto custou meia hora. A sala era pobre, des– guarnecida. As paredes quase nuas. O Coração de Je.. sus e os retratos a crayon. Um era da mãe, logo se via.! O outro era do pai. Grossos bigodes, colête branco, Df ar sensato, morreu num desas~re .de .automóvel, deíxan– -do-a com dez anos. · Era dono de uma loja de ferragens rui Rua da Passagem, logo no princípio, um sobrado amarelo ... -Não sabe? José sabia - logo depois da farmácia, um sobra~T do com duas portas. · -Pois é. Antigamente era cinzento com as portas azuis. Mas a mãe · não entendia do negócio e o sócid do pai, também português, passou-lhe a perna. Vai da~ , a mãe vivia de costuras, pois o advoga.do virou, mexe~ comeu dinheiro e não arranjou nada. Ela ajudava. ~ nham dificuldades, precisavam de ter muita econ4>mia; mas podia ser pior. ! Contava com• naturalidade e uma ponta de tris~ za. Abancaram-se no sofá gasto de palhinha. :tle che..: gou-se muito . Ela repeliu-o com meiguice: · i~ - Deixe de ~aluquice. Não. ;Não. ~~e P._lag_i_ij~J Acabou consentindo: ..:.. Impossível !

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