Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1949

SU PLEMENTO ARTE a· 1 1 - LITERATURA Pará-Belém Domingo. 26 de Junho de 1949 No.127 Morte E R.e_âsurreição ·Do Literatura \ ADOLFO CASAIS MONTF_lRO , / o último ·artigo meu aqui publicado ("O surrealismo con– !tra a literatura") continha uma -passagem que a certos i1eitores se poderá ter afigura– do uin tanto ou quanto chà– iradistlea. Infelizmente, quem eereve artigos, e ao mesmo itempo, pretende dizer real– mentt? alguma coisa, sem to– d1:tvia passar ao tom doensaio, que permite todos os de.senvol– 'vimentos. vê-se frequentemen– )e obrigado a, desleixar pon. tos que gostaria de tocar me- solidez desse universo de se perguntar se a verdade não estaria mais longe e mais fun– do, e · o sentido da vida não dependia de forças que ma is· pareciaim governar o homem do que ser governado por ele . · ta.do em provar que tal ra– cionalidade é ilusória, que es– se' universo é falso. O surrea– lismo pretende pois d€strulr o homem arüficial, e é assim !n- compativel com ele qualqu er sob essa ficção. Cabe-lhe ir zado,. a possibilidade de libez::, espécie de literl!'tura que acel- às i ontes, procurar o verda - tar o subconsciente. Note-se ~ ou pelo menos transige com deiro rosto do homem . E por porém que isto náo se refere a fic<"ão da realidade. Cabe- isso o vimos, sucessiva~ nte, apenas ao .que forma.Imente ~e lhe exprimir O que se oculta servir-se dos ma,iJi diversos designa por poesia, pols que os ,. . instr umentos da mediação pa- surrealistas tanto a encontram Est~s lugares comuns, que os leitores para quem o· são espero me perdoem, tornava– se indispensáv-el. fixã-los em atenção a todo.s os outros que, na ignorancia disto, po.deriam supor {e tais suposições são de tal maneira correntes) o sur– realismo uma explosão tão sú– bita como iI1ex•plicável quan– do se trata afinal de iim mo– mento longamente preparado. Com eeito, pode dizer-se que só ao fim de um século de dú– vidas se ch egou à certeza·· e só ao fl'm desse tempo se 'ti– raram conclusões que, indire– tamente, nos fazem compreen– der que a própria noção de li– teratura tivesse a sua hora de ser IE!Vada a julgamento e condenada sem apelo. ra o encontrar· a ling\1agem nos aforismos de Heraclito e e A - N e A,,._, o· -~JºC:!t!:~o~~ ;º:.1~1:· .. ~r~:~t ~~: :re~~:sn~':i8"R::::. r.omo tiva, as expenenc1as da psi- ,f\ objeção imediata a essa canãlise, a magia. o e:spir!tis- situação de favor concedida â _,,, ~ - . mo. poesia•é que, já o disse no ar- ;»os ao de · leve . E ' do que 1 tenho a penitenciar-me quan- 1to à afirmação, feita., no re– itertdo artigo, de que a chave 1 ,io problema ali tratado esta– ,va no fato de os surrealistas 'tnão terem nunca escrito ro– mances . (A PAULO ~ ND~ S CAMPOS) Aqui nesfa praia clara - Praia clara - OUEo o canto do silencio Deitando $Obre a~ areias O meQ segredo ·mais t rist e. Ou~o. o canto do silencio - Praia clara - Um can~o que não exist e.\ Aqui neste porto longo l Urge porém indicar que, tigo anterio.r; a di!erença 'de sendo estruturalmente mate- qualidade entre bons. e maus rialista, o sur reali-smo não ade- poemas parece d-e.monstrar que re, como decerto hâ quem su- o surrealismo. seja- ele o que ponha (pois que é uma supo- for, é como literatura que se .slção "facll" ), a qualquer das nos impõe, que ~t valor por dowtrinas, , ou métodos ou su- nós atribuído às suas produ– perstições · direta .ou indireta- ç9es não é, afinal, outro que mente menciona.das acima. o negí'egado (para eles) valor Com.o não adere às teorias que liter4rio (e coJsa Idêntica se possam ter ..;obre os a bismos passa com a pintura e a es– que procuram desv~ndar todos cultura surrealista . ) aqueles poetas filósofos e ou- Dizer "Que· belo poema"J - tr~. que Breton t.em aponta- eis o que o surrealismo con – do como a ntepassados ou pre-- sidera uma complacência; S'c ,- Com efeito, não coru;idero /todos os meus possíveis leit-0 - ·tes na obrigação de saberem ,g,ue há pelo menos alguma le– lll'it'.midade em estabelecer uma j:listinção fundaméntal entre a JPOesia e a literatura . Se as· lli.9tórias desta ignoram o fa– .,to, e se, dum modo geral. é mais comum ignorá-lo que r e– conhecê-lo - reconhecê-lo, já ll'lão d igo como verdade, mas pelo mênos como opinião· di– Íll'º, de registro, . c;onsideração e :análise - o fato é que -sem i'ter ~m conta tal distinção se– !il'ia lm.possivel valorizar a fun– i,ção do surrealismo como ele• 1roento fundamental na evolu– itão daquilo que ele despreza. lfl reniiga, isto é, a literatura. Durante séculos, os homens content ·am-se com a ideia de "inspiração" para explicar a poesia. Para a explicar. po– rém, como um "favor!' oi;, deu– ses, como um luxo e uma dá– diva, e não como necessidade. Para a de~ar na situação de produto complementar, de coi– sa que se faz, que se fabrica, para completar a h armonia de - Po,to longo - Ouço a tristeza das asas -: Das asas brancas e puras Mais tristes na paz marinha. Ouço a t risteza das asas cursores, a vários titulas: lie- é belo, é porque é falso, dirá , raclito, Swift, Sade, Blake, ou deveria dizer o su-rrea1ista. , , Baudelaire, Rimbaud, JarrY, P ois que, se é belo, é porque Salnt-Pol-Rous, e.te. etc. - e menté por que esconde o re– duro ,modo geral os r omantl- ai, porque é um arranjo . Ar– cos alemães. ranjo do qual participa a ver- Nào, as obra dos poe1as, co- . dadeira essência do homem '/ Por_ UIU processo que, como 1:Unha nítida, bem visiveI. po– ;dem-os seguir desde o roman- 1Jt.ismo, mas ao qual os pró– fl>l'ios surrealistas têm ido bw;- 1car muito mais longe a ori- 1 gem e os pont os de aflora– /mento, o lugar dos poderes da í a·azão viu-se pasto em discus– :ião sob o a.ssalt:O de outros !l)Oderes: ou do inconsciente. !Durante séculos, predominara no ocidente, indiscutiveI e in– üiscutida,. a idéia de que, num u niverso racional. o· poeta e o artista melhor que ninguém 111otestavam o dominio da ~azão •111obre o cáos dos i!l6tintos e .<los s E:ntimentos; Mas chegou a hora de se pôr em dúvida a ~-~ - Porto longo - ,· Igual à tristeza minha. Aqui nesta ilha escura · - Ilha escura ~ wn mundo em ordem -:- diga- Ouço o Jelirio do yento _ mos, para ser Q próprio espe- Nas suas mãos encrespador 1ho dessa ordem . E, sobretudo, • sem que nem de longe lhe . Conduundo o meu tormento, atríbuissem q~lquer pôssibi- . Oúço o delirio do yento lid_ade de ·ser u~strumento ~ _ li/ta escura_ aça,o" ,_O surrealismo tem pois , de comum com outras tendên- Num cavo longo lamento. cias do nosso tempo esta tão • definidora caracteristica de ser Aqui nesta vida estranha intervencionista. - Vida estranha - Ora, por que digo eu que o O I d · surreali&ta nl-0 pode ,escrever . uço a uga ê um nQ\'IO romances ? Fascinado pela noite · Precisamente porg,ue ser ro- Cansado de se buscar. ma:1-cista • su.põe_ ac~~tar-se a Ouco a l una de um navio validade, nã.o digo Ja da or- ~ • ~ • dem sócia!, mas do próprio - Vida estranha - mundo; um romancista admite Mais cio céu do que do mar . ' implicitamente a ·r!<clonalidade do universo tal como existe para ele, tal como lhe aparece. Ora o surrealimo está apo.15- Alphonsus de Guimaràéns Filhc mo nas teorias cientificas, co- o ' surrealista decerto o .ad'... IDO em certas formas religio- mitirá, mas pl!ra recusar· es– sas ou de superstição- que ã - te s·enão que macula· a a:utên– recem estar mais próximas q.a tica nudês daquela ..• primitividade, o surrealismo só O leitor considerará decer– procura o fato que elas pos- to tal posição "excessiva". Mas sam conter : o homem nú, fl •não terá -ela, pelo menos, uma bom-em ahterior ao "conheci- espécie de exame de consci– mento social, mor111 e religlo.; ência, necessário e saudável". so .. E, por tanto, também o Se considerarmos a •que pon– uomeru anterior ao condicio- to a literatura se tornara nu- 11amento estético. escusado se- ma fãbrica de ilusão, servindo· ria acrescentar. ao homem para ocultar a ig– Ora, a · poesia é a. voz do ho- nominia sobre que assentara a mem autêntico, ou tal se su- falsa ordem dó seu mundo, p õe s er, enquanto a liter a lura. para fingir a luz nas trevas, reria a do homem corrompido, para negar as suas mais hu – do h omem feito um lnsku- milhantes expertências, para. mento disciplinado, do homem se forjar · uma coroa de rei r eduzido à roda da engrena- dum universo ·em qu-e ca.da . gem: da literatura, para o di• vez se sentia maür impotente J:er ainda de outra maneira, e mais ignorante - se tal 5eria composição, aceitando as considerarmos, não se nos tor- fundamentais disciplinas ra• nará fa..cíl compreender que a oioriais; o di.<1ourso é, em si, li- literatura tenha sido levada a teratlll'a, neste sentido a poe- voltar-se contra- si própria,' sia se salvará, pois, visto que para se .salvar, isto é, para. ela não é por definição discur- Pl'.~ ar a si própria que, como siva, e só ela seria, no primí- a 'fênix, podia arder e renas- tivo, a sua nudez, no civill• cer? · ' Em seu livro "Portrait de ,iotre hêros", o ensaista e ro- ~ anêista francês R. M. Albé– s procura configurar os ca– cteres daquilo_ql.W) ele defi– coma "uma nova estação sensibilidade", no campo O ROMANCE f\AODERNO -- . -· .... -. ... --- -- --- n al, se funda na fantasia e na imaginação se confiaram as a'Sfl)irações e inquietações concernente$ à salvação do homem! Mailraux, Faulkner e Kaf– ka e:x;plicam -se em Heidegger· e Sartre, constituem a trans– crição literária de uma filoso– fia. .,oma'ntico . gante e um tanto tenebroso i , P a rece.,lhe que um roman- a tormentado pelas paixões, ~e de hoje, um autêntico ro- vestido à moda dé um dandy . ~ a,nce de nosso .tem:r,o, com e com ares entediados",.. · ~ua insip1da e sensual · reali- Mais viril, o heroi de nos– ~ade, deve atordoar -nos como so tempo é um ser errante e ~m sôeo nos queixos. Essa lu- instãvel, brutalmente, corajo- ! dez desesperada dos livros so diante das violencias do e ensaios, essa brotalidade mundo, Por pudor e por ex– ombria do tea,tro de Sartre . cesso dP, força, esse heroi do ~u de Anouilh, esse odor de l'omancc moderno fugirâ às ~angUe fresco do romance con- não se escrav~za à maciça ~emporaneo - diz Albéres - realidade. Nem pertence à I ão as cores, os sons e os per- :.en-a. nem . às nuvens. Não se umes de um mundo novo, cu- move na vida real, nem na o demiurgo ignoramos ainda, ~aginaria. Emerge de den– ão os indícios de uma nova tro, de nós, emana das {iguas stética, ainda não de todo profundas desta vida tão du• enhecida por nós, mas q ~ r amente lógica ,,.. tão turba- ~ ita.mos i n s t intl vamente, da pelo exterior, que viv<~m ntificll.ndo-a como a de em nós aquelas coisas, a que oso tempo. - mais nos apegamos. Esse ro- ·-· Há um h erol 1944, como mance moderno apareceu com IJlouve um h erol · 1830 - es- · "Le grand Meaulnes" . treve ,Albéree. Ao ler Byron "Não mais se pede ao ro– ~ Mu.sset, nã-o podemos dei- mance que nos conte uma rus– t,i:ar d-e sorrir, quando nos a- tória, uma fãbula", exclama ~ece. a_quele persc:iageIXJ. e!e.- N,9~r~ =- e:icri~i: elo_<1uente -.. CYRO DOS ANJOS e · torrencial, que escreve co- percorreram o campo do l'n– mo se estivesse a pregai:, num saio litemrio ou filosófico, há comido, "EX1gimGS que ele _oer-ca. de quatro décadas, 1,Jas– II06 faça meditar sobre nós sam a dominar o romance mesmos, faça falarem em contemporaneo. nós as vozes a que o mund'J Albérês alude a Nietzsche e ou nossa vontade até agol'a Kiekérgea.rd e, mais proxima– impu.seram silencio" . mente, a Claudel, Peguy, Una- Tal romaooe exige uma téc- muno, Pa.pini 1 Prezzolini, S– nica a ,parenta.da com a do ci- plenger, Chesterton, Belloce, nema: sêca, precisa e violen• Lawrence. Tudo o que hoje ta. nos impressiona, venha do fe- l!! esse romance não se CO• noanenologísta Sartre ou do mentará a si mesmo . A emo- existencialista Cárous foi dit o çáÓ do leHor ba-de nascer do aí por volta de 1910. e até de.cobrimento do sentido trá- muitas vezes, de modo pueril, gico, estético 'ou moral - :iue por qualquer ensaísta ou poe– o autor não tomou explicito, mista. mas quis e:x,primir atra..vés da Assim - continua o nosso ação dos seus personag~ns. autor - de · jogo e de leitura -i:· um romance de idéias. recreativa, o ro1Il6nce passou Há quarenta ano11, djz Albé- a .ser também instruroento do rês, vem-se verificando uma conhecimento. Da simples verdadéira descida das idéias descrição, da peripécia, ou da no território do romance . As imaginação gratuita, evoluiu correntes de J)eDsamento~ Q.Ue à bi-erarquia iie "testemu~o". F.ncanega-se, agora. de nos instruir, e com os mesmos ti– tukls de um tratado de bio– logia ou de um manual de. psicología. Tórnou-se conhe– cimento do mundo e sintese prática de todos os conheci- mentos , · Magro alimento para nos– sos anseios de verdade, estas ex-pe1'iências 'humanas -do ro– mance, posto que cou,josas e desespera.das ! exclRala Albé– rês. "Todavia, continua, para a maior• parte do público a leitura do r omance constitui– rá o umco instrumento de procura duma certeza que possa fundar umà moral . . , Neste século urbano e meca• nizado, poucos homens encon– trariam, fora do romance, oportunidade de perceber a existência desse problema, que é o sentido da vida" . Assim, conclui Albéres. de– frQntamos esse paradoxo: a 'l@l .,gênero }iterârio g-qe.., ati- Outra caraoterlstica do ro– mance 10oderno ;:._ ao ver de Albéres - é a· sua ·religiosi– dade. Assim, assinala a én– trada de uma época que, não sendo cristã, é, contudo, reli– giosa - embora não se possa talar sériamente na existência de uma nova religião, "O JSenso do lllila.gre e do maravilhoso deixou de set pu– ra.mente estétíoo para se tor• nar 1·ealm.ente metafisjco, Es– sa religiosidade difusa, mas persistente, que por certo não chegará ~ cristalizai-se em torno de uma teologia - con– clui o ensaista francês - é uma de marcas mais nítidas de nossa época. E o acenio profundamente original desse estado de espirita faz-nos pensar naquilo a que Ber– diaeff chamava "uma no" Idade Média." •.._,

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