Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1949

TE \ Pará-Belém Domingo, 5 d Junho de 1949 N.o 125 ------------------------------------------------------------------------------- o SurreOlismo Contra /\ Literatura Quando .se dispa o surrea– lJ:mw da a nedota, do snobis– mo pró ou conJra, dos fluxos e r efluxos da moda, do cre– '1niJmlo que vai às cegas atrás ..Hle, e do cretinismo que ~bém vai a trás dele, mas -i>'\?a lhe atirar pedras - em iimma, quando se dispa o sur- ali.smo de tudo aquilo que, ada -lhe dando nem nada lhe itl, ando, prova contado a sua ~xtraordinária projeção sobre :is idéias e as formas estéti– ~ nestes últimos vinte e einco anos, ficará ainda, re– eeio bem, demasiada comple- 1idade para o gosto de todos a queles a quem a simples men!(ao desta palavra leva a ;nm sinal da cruz encandali– ~lo e sem apelo. Essa complexidade é con– tudo, porventura, o segredo da v italidade que ~rmitiu ao isurrealismo, nascido pouco _-tepois da outra guerra, e ~pós ter sido entre aquela e n última um fermento cons~ 411.nte de saudável heterodo– :K.ia, r evelar-se ainda, nos tem– iJ>OS da Resistêl'.cia, uma · das (forças que permitiram a "sal– vação" da poesia, senão da lteratura francesa em geral . Ao passo que as gràndes fi- guràs, vivas ou mortas jâ, c:iue impuseram a sua deda~ ~a indelével sobre a litera- i.ra, entre 20 e 40 - os iProust, os Roland, os Clau– õel, os Glde, os Valery - j á ão ofereciam um poder de linadiação capaz de fazer a– :vançar a literatura, o surrea– íllsmo - não Breton, não Tza- a, não Péret, não Desnos, mas "o &urrealismo"-insta.lou-se no roag-0 da própria "realidade ílllerária", foi a alavanca so– :b1·e a qual a placa giratoria ~a ljteratura passou duma época a outra, morrendo e e11ascendo, tornando-se outro ,e continuando a ser · ela pró– J)rla . Qual é então es. comple– :x.ldade do surrealismo ? Aos · olhos do literato, do rudente literato nacional ou •~trangeiro, que só pode enca– ar uma coisa de cada vez, e ara literatura é só literatu- ~ , essa complexidade está em ue o surrealismo é, ou pelo eno.s foi, uma doutrina de jVida. Ainda não se falava em l'"engagement" e jã o surrea- ismo representava, contra a teratura, não digo oficial, rque tal coisa não existe ,em França, mas digo a aca– Jt;ada pelas opiniões "respei– , áveis", a negação do espirito 1 lterário . O surrealismo é, ou oi, uma espécie de ordem ranciscana da arte e da li– ~-t'eratura (nem lhe faltavam I s excomunhões, em que foi értil quase desde a primeira _h ora), na qual se entrava epudiando, não só qualquer _ f orma de profissionalismo lite- rãrio, mas também, e sobre– tudo, todos os princípios ~a organização social vigente. E assim, embora sem chegar nunca a acordo satisfatório, o grupo surrealista procurou, desde mUito cedo, alinhar na extrema esquerda. Embora este aspecto não interesse aqui diretamente, era indis– pensavel a alusão, sobretudo porque nada estava mais longe do esplrito surreal_ista do que confundir propaganda com poesia, pois entendia o qUe é muito diferente, iden– tificar revQlução e poesia. O - surrealismo pretendeu ser o coveiro da literatura , Contudo, Breton é senhor de O IDOLO E SEUS IDIO- ADOLFO CASAIS MONTEffiO um dos mais belos estilos de que se _pode orgulhar a lite– ratura francesa, e Eluard se– rã um clássico pela maravi– lhosa pureza dos seus ver– sos . .. embora não rime . Con– tradição que não impediu o surrealismo de existir, pois, por extraordinãrio que isso p a r e ç a aos fe:-renhos de ilusórias conferencias e de ilusórias racionalidades, ne– gando a literatur a pode fa• zer-se excelente Ut.ei;atu:a . Enquanto Breton e o seu grupo proclamavam o fim da literatura, 1am também, eom os seus poemas, e até com os seus ensaios, constitUindo a função mais viva da literatu– ra da época, não obstante es– ta se recusar indignada a re– conhecer-lhes categoria literá– ria . E quem sabe se não teriam razão ? Pois porque se modi– ficou a literatura sob a sua infiuência ? Não deixou de ser literatur a, é certo. Mas pretenderia Breton "liquidar" em absoluto a literatura, não seriam as proclamações ofi- Xilogravura de Yllen Ken ~ AS. Por mais que afete o liia - criatura do suces- Do Caderno De clats Ido SUf!\laUsmo algo que ia além ou ficava àquem do que havia de mais fecundo na posição assumida ? Sem dú- . vida. Não é novidacle para ninguém que, entre os pró– prios escritores, e desprezan– do aquele espécime que eles próprios designam como "li• t erato", 1iterato, nesta acep– ção acintosa, é aquele indi– viduo que por vaidade, por espirito de imitação, e até as vezes por ingenuidade, se equivoca inteiramente sobre a verdadeira essência da litera– tura, e se dá "ao luxo" de fabricar coisas que, na apa– rência, são exatamente o mesmo que a literatura ver- João ~ ·mplicidade, o grande h omem o e da fama, filho de cartaz do equivoco - não deixará e considerar os seus admi– adores como gente que o vai assando para o estado de estátua. re de Babel que a humanida– de de hoje - pelo menos a maior parte dela - deve ser ANIBAL M . MACHADO -vam. Então, COll1eçou a rlr. - Ri até hoje. ,. - * * * 1 2 . O espirito muda de po- l ção ou retorna à antiga, em ue repousa e se aborrece, epois descobre que o me– or tempo fõi quando anda– ar livre, à procura de uma olução, isto é: quando fatia I\S$ear a sua inquietação. * * * 1 3. Não devemos ser maill i eeonhecidos aos que nos se– uem, do que àqueles que se fastam de nós de uma man ei– a a rd,ente. * * * 1 4. Tanto nos leva ao porto )> n avio quanto o mar. * * * 5. PARA A ULTIMA FES- ~'A, Não é somente por não 1'e1· ainda destrUido a sua tor- responsabilizada; mas pelo crl- te particular e espessa com a tantanea a atravessar o coTpo me de estar retrocanda e en- qual dormimos - ãtomo da opaco da consciência; um mo- feitando a condenada torre. srande n oite in-divisivel. mefrto que se realiza além dos * * * * * * . llm~tes em que os mitos e as 6. O HOMEM E A NOITE . 7. Vai alimaria trotando e formas habituais do espírito Não é noite - dimensão poé- vai carro chispado, gente va- operam o seu jogo . Intraduzi– ttca ou conceito metafisico - garosa do campo a pé; a gente vel a não ser pelo riso - o que me retiro, Nem à noite nervosa da cidade, ao volante. riso dos idiotas. Esse estado de moral, . treva da alma, r emi- Uns param para rezar nos riso é o oposto da embriaguez niscência teológica da idéia de oratórios; óutros para se abas- do Dionisos nietzscheano. Ex– queda ou pecado original, t ecerem nos postos de gasoll- prime ao mesmo tempo a vi– Refiro-me à presença concre- na. Os últimos são quase sem- são subjetiva do idiota e a ta, intima da noite; a que se pre filhos e netos dos prtmei- sua resignação à incapacida– aproxima da cama ou do ros, mas se desconhecem e se de ge exprimi-la . banco do jardim pata nos despreza.m. Quando tentam * * * colher; a que nos dá de be- conversar, resulta um dlélogo · 9 . Ou tu me decifras, ou eu ber a sua substancia de es- frustrado, ininteligivel. te devoro. _ quecimento, a que vem ser * * * A Esflnge dera longo pra- chamada, e é desejada como 8. Os idiotas são dotados de zo. Não foi decifrada. E, um armistício. A noite neces- certas intUições de que care- quando ia aplicar ~ --l)ena, viu saria na qual nos enrolamos cem mUitos esplritos superio- que nem era preciso: i>fl pri< e que se enrola em nós. Nol- res . E' uma iluminação ins- prio.s homen se en~rede Jra- * * * 10. De Prometeu que san- gra. no rochedo, a dor mais terrive"l não viria das bicadas do a.butre . Nem da própria solidão orgulhosa. Mas de ter duvidado um: segundo, se aca– so duvidou . • • • 11. Vl,I\GEM. Prenúncio de mutação real na viagem imó– vel que ele vinha fazendo des– de & adolescencia. Começou o encantamento no guiché da Companhia quando lhe disse– ram que sua cabine era do lado da Africa . Do lado da Afrlea !. . . Suas pernas tre– niêf m Jel' m- · enderecos, enco– ni-endas. r ecotot"-<'lai.:- .. O na– yto ap_itou. Pela primeira vez _dadeira. Não sendo cte estl1t• nhar que hoje muito mais "literatos" do que escritores, igualmente se não deve es– tranhar que, nas 01bllotecas e nas montras das livrarias o "ersatz" se encontra em re– lação ao produto autêntico na pr oporção de 99 -para 1. 0 1? . sucede que até ao verdadeit•") escritor sucede por. vezes re •) duzir-se a um literato - õ que sucede à literatura, pe -· riõdicamente, reduzir-se a . : literatice . .Num desses mo– mentos, um certo número de escritores franceses em potên– cia, e outros que já tinhEA.m publicado uma ou "plaquette" . de versos, olharam, à sua vol– ta e, como assim o queria a tensão da hora - isto passa– .se depois de acabada a pri– meira grande guerra - acha- 1·am que já não havia outr -coisa a fazer senão pass -certidão de óbito à llteratw. sem distinções. As convulsões por que o mundo acabara de passar, e mais ainda talvez o pressen– timento de outras, a angústia sobrevivente à catástrof-e, nã<' eram próprias a que espirita:; profundamente sérios (que o eram, pelo menos, os p!"inci– pais surrealistas), pudessem considerar jã como solução a. criação de uma nova "escola"; !não, acaba.ra o tempo das es– colas, acabara o tempo de aprender, e o de transigir, e ~ de ter "ambições literá1ias"; morresse pois a literatura. To– davia, Breton e Tzara, Péret e Aragon, :tluard e Desnos, etc. , etc . , eram, de tato, es– critores; quer dizer, se eles po– diam pedir a morte da sua classe não podiam pedir a do instrumento, a da função; eles escreveriam pois.. , mas nã escreveriam literatura . - E' fácil, hoje, rirmo-nos . ingenuidade dos surrealistas. lt fácil especular com esta con– t radição inicial. Mas, ·embora. isto seja um artigo peja ra– ma em que por força do lu– ga.; e da extensão não se po– d e ir além das generalidades, creio impossível passar adian– ·te ,dando o caso por julgado. R;almente, o leitor precisa de ~ber que os surreallstas _nll;ll– ca fizeram romances - e e nis– to que está a chave de tudo, .se quisermos entender o que . é para. ser entendido . ~m efei– to a atividade surrealista, pos– ta de parte as cha~adas. artes .,plásticas, que aqui delibera– damente esqueço (sabendo não obstante como pô-las de parte mesmo por mera comodidade de expressão, resulta traiçoel– ;ro), e tudo quanto seja polê• mica manifestos, critica - es– sa atividade é, essencialmente, p oética. Não foram os surrealistas os primeiros a entender que poe– sia e literatura não são a mes- 1(Contlnua na segunda pagina) esse apito iria deixá-lo, esque– cido nas Iages do cais; leva– va-o também, era o apito da partid~ capital de sua vida. Prôa virada a nordeste, o qua– drante favorito. Das conversas !ie convés i:!áo participa o via– Jante senao falsamente, os Cllhos presos aos fenômenos do mar, aos _movimentós essen– ciais do barco. Despreza as informações de v.,elhos viajan– tes, a :fim de que se enqua– drasse intacta na sua visão de infância a cidade com que ia encontrar-se. Retroage facil– mente aos primeiros ano.s de sua vida. Deviam supô-lo im– becil, quando per.dia h oras a :fitar o oceano, esperando ma– r avilhas. As conversas não poéticas ele as evita; e evita os passageiros que não estão sob a influência especifica do mar . Vê a prometida costa ~ Africa. Passa ao longe o dorso da Espanha, Tudo se precipita. Os paS!:ageiros acu– mulam-se no convés a con– templar o porto iluminado. A (Cominua na aesa,mda p,.gt)WJ

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