Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1949

. ' l.- LITERATURA ARTE BELÉM-PARA Domingo. 9 de janeiro de 1949 NUM.109 , Não está tendo na impren– sa de Paris a repercussão que era ~ esperar a exposição que Pablo Rw Picasso abriu 11a "Maison de la Pensée iFrançaise", ali entre os Cam- 1>os El.iseos e o Palãcio da l>residência da República . O mestre espanhol apresentou a,ela primeira ve-z em público 118 suas cerâmlllllS executa– das em Valla,uris - terras de frovença - . durante estes dois anos em que o grande ar– l;ista • esteve ausente da capi– tal da F ranca. E perante este 10medimento, esta timidês quase, com que a critica pa– tisiense ac<ilhe o espantoso ~ontecimento, a gente fica tom a impressão de que hã aqui todo um .fenômeno d-e erupção Inesperada capaz de Desnortear os espíritos mais prevenidoe. E estas cerãmi– eas de Picasso exigem, sobre– tudo, desprevenção. Isto é lanto mais para estranhar quando é certo que a critica s,arisiense, salvo . raríssimas exceções, nem sempre justas, ,os.tuma registrar as "geniali– dades" de Picasso (assim cha– Jlladas por quem não compre– ende o seu. gênio) com um ent\..Siasmo quase dogmãtico ARTE EM P ARÍS viar matéria culta; em ma• !iria pura, primitiva e' origi-, tal. . Não A Crítica Parisiense ·Ainda Digeriu .As Cerâmicos De Picasso Vêem-se na Exposição de Picasso pratos, travessas, azu• lejoa, cântaros, vasos e jar• ros. Pieasso observou, em suas cerâmicas, o uso tra– dicional. Mas que poder de criação nas formas, na gr:'a• ça das :formas, na delicia dos desenhos, com que trejeitos femininos e, ao mesmo tem– po, com que quietude de eternidade e hierarquia clássi• ca, a.s mulheres de P icasso se transformam em jarrinhas Jt uma exuberância de singu– laridades interpre·tatlvas qu_e soça pelo absurdo. - · Picasso serve-nos agora, e Is mãos cheias, •um riquissi· mo acepipe · da · Terra e da Jlistóri.a, só, realmente, para .,. estomagos fãceis, que são, por via de regra, · os estôma– gos puros e sf-06, E o estôma- 10 de um critico, em geral, lt)tige uma margem de incom– preensão pe.ra poder disser– tar com a .terminologia · ade– Quada à prestância do seu "'metier". Nas cerâmicas de Picasso tudo é simples, direto it puo.-o. Daí que custam a •digerir", sob prismas de vi– do de.formados Por sistemas, escolas, O'U prevenções. Picas– ao, ceramista, ou provoca amores de "éoup .de .foudre", ,or que li. à espanhola, de , -_ntréga imediata, por a.fini– ~ade ·temperamental, emocio• ~l ou telúrica, QU nâo se en– ~nde. Esperamos, contudo, _.,_ue as .fórmulas de racioci– )lar da critica parisiense che– jll.lem, com o andar do tem- po, a conclu.s6es definitivas, que, pelo visto, as peças da cerâmica picassiana não lhe inspiraram à primeira vist11 . Conta-se que Picasso, antes de consagrar-se à sua nova arte de cerâmica e olaria, an– dou perguntando por todos os oleiros do IVI1di da França, como aquilo se fazia. E que se lançou, depois à argamassa e ao barro, com mãos vigo– rosas de obreiro e feitiços de mago, fazendo precisamente o con~rário do que lhe disse– ram. Ora, isto não deve ser verdade. Picasso não c9J1tra– ria nunca a boa gente do po– vo. Há nesi.a uma seriedade de oficio que se coaduna muito bem com a sua. O que acontece é que· há sempre nas "presenças" · de Picasso um acontecimento extraordi– nário, e, como todos os acon– tecimentos extraor.dinários, te– ce lendas à sua volta. O "cho– cante" artista andaluz tem • sobretudo o boan gosto de não as desmentir. Numa lenda há sempre muito de . verdade poética, mas hã ,também um pouco de mentira da melhor lei. E Picasso ·revela-se · em seu novo oficio dé artista ·ex– cepcional, Dão . só o pro– digioso criador de sen:i• pre, mas tamoém o ex– celente artesãÕ. ·Tão artesão que chega, com.o em suas pinturas e desenhos, a saber tão bem de seu, oficio de ce– ramista que desfaz e de.forma linhas e cores wra as refa– zer harmanicamente, em es– tado de graça. Picasso é homem que goza de muito boa saúde, e de mui– to bOIID humor. E' também wn critico social, de acerada verve, à sua maneira. Os se– nhores sabem o· que ele :fez NOVAIS TEIXEIRA (Copyright E. S. 1., eom ex- vata preta e a envergar um · co e do popular que hã nu– olusivldade para a FOLHA "smoocking", Arrancou-lhe do ma "C1a®arreria do pueblo" DO NORTE, neste Estado) ~ bolso 500 francos por cabeça. c!e Espanha. Porque nesta ex· As damas também pagavam posição de Picasso hã muito. no dia dQ inauguração desta entrada, como os cavalhei- de "cacharreria", de loja de Exposição, aberta num dos ros. E convoco1.1ros para a capitalista, de púcaros e bo– bairros mais "chies" e pres.: solenidade da "vernissage". tijas; e de cores e formas, e tigiosos de Paris? Chamou. a E, assim, os aromas de Guer· materiais e qualidades de reunir todos os "snobs" que Iain e os modelos de Jacques peças . exumadas, intactas e dieambulam pelos meios ar- Faúh viram-se caídos, sem es- frescas, .das velhissimas cida– tisticos da capital, Isto é, os pa-ar, dentro de uma "ca- des, jã soterradas, da Grécia seus admiradores incondicfo- charreria" espanhola, com to• e do Egipto. O grés das ce– nais . Obrigou-os a pôr gra- das essas evocações do rústi- rãmicas mais remotas, com e bilhas I Muito de fauna e de flora oriental trazida pa• --------------------------- ;eus desenhos rupestres, seus ra a arte do Ocidente por este assinai~ barão de nossos dias. E também alguns fa'u– nos. E' a última obsess.ão de P icasso: os faUIIlos . E mui• tos verdes de alga, de fundo do mar, e malvas de transpa– rência inconcebível, e touros com vermelhos de sol, e ne- · gros de brilho profundo e misterioso . Há nos desenhos SOMBRAS NO AR Um resto azul de sonho ainda me ilude, Mais visível se torna o meu fantasma Turvo, entre a névoa da metamorfose. Respiro o ar leve que sustenta o mundo: A vida, nada mais que êsse respiro, Meu olhar, nada mais que essa procura: lste o mundo a que vin,, de pedra e sonho. Penso: Por que me cerca «Sste cenário ? Quem:sou eu para ser digno da vida ? Que farei neste mundo, que direi ? Prefiro à _minha voz o som das água~, E a um pénsamento, por maio,, prefiro · Que por minha cabeça pa~se o vento. Arde a n~em na luz que o mundo acende, Ao longe, o fundo da existência. Sempre O céu presente, do alto presidindo. DANTE MILANO bisontes e centauros e as de– licadezas de linha e forma das an.foras gregas, encon· tram-se nas novas criações de Picasso, ao lado, e às vezes, misturadas e confundidas, com os barros vigorosos e toscos dos "pueblos" da An– dalusia e da Extremadura es– panhola. Concentra-se no Pi· caMo ceramista, toda uma li– nha histórica que parte do e nas concepções da cerâmica picassiana todas as fases da vida artística do mestre e al· guns milênios da arte e do oficio das olarias. E, sobre– tudo, muito de Espanha, isto é, nobreza de gesto e altivez e altissonância de _caráter. Oriente Médio, corre ao lon- E' talvez tudo isto qi.:e .te– go de todo o Mediterrâneo, aba desnorteado um tanto a passa, através do Marrocos ~ritica parisiense, - pelo me– espanhol, para o sul da Es- nos, a critica em voga - ·que panha e sobe at.é o Midi não podi! fu,ndar um slste– francê6. E, sobre essa linha, ma, umá escola, uma teoria a personalidade mais forte e sobre estas criações de P1- singular da arte de nossos r casso, cuja espontaneidade tempos: Por exemplo, a cerã, rural e rústica, plena de for• mica hispano-mourisca, com ça telúrica, ganha expressões lampêjos de cobre, de que se plâsticas de uma simplicidade encontram ainda soberbas tão surpreendente e tão pro– peças em m~itos recantos da fi:,nda como a de sabedoria Andahisia - no Museu Clu- popular . Enconti:~m-se pági– ny, de Paris, guardam-se al• nas do Quixote com dúzias de guns bons modelos dessa ce· provérbios do povo, e quem rãmica . - chega com toda a sabe a origem remota dess11 nobreza de sua tradição à ce- ciência ? O mesmo se pÓde rãmioa plicasslana, como co- . Wzer da cerâmica picas;ia-• bre em bruto, sem lampê(io na: sabedoria .faraônica e lou– metálico. Aparece ali com o ça, aos montões, das nossa11 fulgor de um sol atormenta- feiras de h!?Õe, com linhas, do, rubro, de maravilha, da- formas e cores saídas da! quele mesmo sol .das • terras mãos de um dos produtos cálidas que deu a luminosi· humanos mais curiosos e pro– dade aos cobres das cerãmi• digiosos da Arte de todos os cas ãra.bes, mas antes de tempos. Antontn Artaud, o surrealista, depois de ter passado 9 anos no manicômio de Ro– de:Z, acaba de .fazer sua "rentrée" em Pa– ,ris, publ;i,cando um panfleto de vio~ncia Inédita: "Van Gogh, le suicidé de la so– J:iété" . Em .face das experiências dolorosas do autor compreende-se essa tentativa de ~'Uto_-dramatização, Artaud mirando-se no 'ispelho da vida infeliz do grande pintor. iio fundo, aquele pab.fleto só revela de 11ovo. o caráter intensamente romântico· do VAN GOGH lento até a caricatura. Na aldeia de Nue– nen, no Brabante, pintou os camponeses e tecelões da região como se fossem mons– tros deformados pela miséria: ·uma reali– dade realista e no entanto tantástica <na vizinhança de Nuenen .fica a aldeia de Brueghel, da qual tem o nome outro grande realista .fantástico). Os quadro~ dessa fase de Van Gogh são traaicional• mente escuros: marron, preto azulado, lu– zes pálidas. Mas essas tintas não represen– tam a realidade. A paisagem do Brabant.é é uma das mais iluminadas do mundo, res- · surrealismo: · mais . .uma vez denuncia-se a sociedade que não -compreende o grande 'artista, o individuo 'absoluto. , Essa inc·ompreensão seria o destino ti– pico dOI! grandes precursorés. E Van . Gogh foi precursor: a sua situação é das, màis itr,agicamente isoladas, entre o iinpressio– llismo de Úm lado e·, doutro lado, a nova "'Escola de Paris" de · 1910. Assim tudo pa· irece claro ·como a representação de uma !tragédia grega sob o céu sereno · da Pro– !vença, lá onde o ·destino de Van· Gogh se ,cumpriu. Mas Van Gogh é tudo, menos ;clássico; nem sequer u:m clãssico incom– p reendido . Já vale a pena perguntar por ique não o compreenderam, nem ·na Fran– ~. nem na Grécia dos tempos modern os e ao ~esmo tempo o país dos grandes experi– ;lllentos · artísticos, nem na Holandã, pafs 1iem que nasceu essa alma perturbada . Pois tvan Gogh é holandês, natural da provin- 1eia do ·Brabante, conterrâneo de Brueghel. i !Aquela in terpretação de Van Gogh como tigura Intermediária entre o impressionis– m o e a nova "'.Escola de Paris", conside– randÓ-se como pintor .francês, baseia-se no to de que a França lhe abriu os olhos: 1>s seus quadros tipicamente "goghianos" foram pintados na França. A fase h olan- E :Visionário OTTO MARIA CARPEAUX (Copyright IE . . 8. 1., eom ex.clusi.vidade para a F,OLHA 'DO NORTE, neste Estado) Ídesa de Van :Gogh s6 é um -'prelúdio aos J~l~imos 5 anos, mas 5 anos apen·as, da vida. 4<>. pintor, passados na França .· -A,s raizea ~e, Van GQg~, é preciso ·procurá-las na Holanda. ·. Há pouco organizaram no Museu Mu– nicipal de Amsterdam - baseio-me em in· formação do critico F. M. Huebner - i#na exposição "Vtncent Van Gogh, entre os seus contemporâneos holandeses". ni– petáci.:lo esquisito: as natur ezas-mortas e paisagens apocalipti<;as de Arles em melo .~e marinhas calmas, pescadores, campo– neses, vacas sedentârlas, dessa pintura mo– destamente realista e bem sólida dos Ma– r.is Mãu,ve,, l&raE>ls, Breitner, que aldo~ ti.aro mais tarde a maneira impressionista apenas como mais um recurso do seu rea– ~mo herdado e Inato. Van Gogh, se ti– vesse permanecido na Holanda, também pintaria assim, acabando em calma os dias de uma existência burguesa 7 Van Gogh, no começo, é tão holandês como os Mauve· 'e "Maris; tintas e~.curas, reálismq estático qué também é dá tradi~ ção nacional: os Gerald Don, Nicolas Maes, De Hoogh e Vermeer transformam t udo, paisagens, Jl).arinhas, cenas de "genre", "intérieurs" e até retratos em natuil"ezas– mortas. Van Gogh também pinta.rã , du– rai:ite a vida toda, n atureMs-mortas; mas não serão estáticas. A primeira r evelação pictórica foi, pa– ra ele, Millet. Mas n ão t anto o realismo de Millet, pouco superior ao daqueles con– t empor âneos holandeses, do que a emoção quase .religiosa do pintor do "Angelus" em face da natureza e do homem. Van Gogh, .fiho de pastor protestante, foi ele mesmo teólogo :fracassado; d~is, quis evange– lizar 08 trabalhadores de minas da região do !Borinage. A crise religiosa daquel-es dias ainda não se revela na paleta, tradi– cionalmente escur.:t; antes no desenho, vio- . plandescente de luz em cima de campos dourados. Mas pintou-os escm-os aquele q i.:e pintará ma is tarde campos de trigo lncendlãrios da Provença. da mesma P ro– vença que a outros já se afigurava quen– te como um desert o cinzento I Em vários s entidos ·esse individualista absoluto lem– bra o outro grande isionãrio da pintura holandesa - Rembrandt, ele também in• coIDIJ)reendido pelos contem,pora.neQS por-, que pintava "do contra", sombras onde os - •.outros viam luz e luzes de repen tina re– velação r eligiosa on de os outros só viram as sombras da vida trivial. O Van Gogh de Nuenen já é o de Arles: pintor de ar a• bescos violentos, separando duramente os tons locais . Que podia signi.flcar., para ele, o impressionismo francês, contrário em tudo à sua natureza ? Admite-se certa in– fluência de Monet . Mas a pintura de Mo– net, Degas, Renoir, não foi para ele um ponto de partida que t eria, depois, rene– gado: esta não é a situação de Van Gogh e slm a de Cézanne . Na F rança a.penas ae intensifica a :::naneira de Van Gogh; aque– les 11rabescoa agora parecem os caminhos ,continua na 2.ª pag.) ,

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