Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1949

SUPLEMENTO _ ___.;,~ ----=-,-.;.---------==---------....:...-----r••••:,-_-_-_:,:,-_~_-:,_-:,_•_-_-:,_-_-_-:_:,~_~_•_•_•_-_•_•_•_-:,_-_-_-_-1~ 1 UTERATURA Pará-Belém1 Domingo, .20 de março de · 1949 NUM.116 l Stephen Spender, poeta in– glês qu-e combateu pelà repú– blica espanhola, analisou há l)Ouco o conceito de "moder– llO''. em poesia. POESIA e- PESADELO den em sua v1Sao sociali. pela. circunstancia óbvia «i desagradevel de que "a sacie. dade não parece estar se mo.. vendo na direção de um pa.. ralso socialista, e uma visá<) utópica. não é suficiente pa1·a, quem queil•a fazer um 1·etra.. to poéticamente verdadeiro dir; vida humana, como uma wü. dade de conscjência sob a. es.. trutura despedaç{l,da das cris• taUzações externas do nossQ tempo''. Os poetas- desse tipQ cantavam t><>is o inverso da. realidadé que os envolvia, .o seu modernismo era a nega– ção da vida moderna, sem ser. ao mesmo tempo a -superação ou a solução desta., que per.. mahece com seus pesadlelo:l demasiados reais. Outra solu• ção, a de .Eliot, converte ô desespero tipicamente moderno de "The waste Land" em salvação pessoal pelo crlstia.. nismo: a fuga do tempo atra.. vés da. intemporalidade. Es.. sas experiências "mod-ernas" estão liquidadas como tais.: . O "moderno" começa por ~xistlr em nós, na nossa pró- 11ria mente, como um primei• ro motor de certos artistas, , observa o autor de Ruins ànd nVisions. As vezes é um com– ,&>lexo, outras uma neurose. A - 1>1·eocupação de "ser moderno" iapresenta-se não raro in– :.,0.nsciente e de toda maneira ·domina a atividade criadora ';lle determinado- tipo de ar- tistas. • ! Ma$. o . "moderno" existe lora de nós, como urna con- ~ equêiicia desse estado de es– irito e como um fenômeno ndependente dele. Assim, ·111ão s.e trata a rigor de um fenômeno contemporâneo. "O ta:or,tt!mporaneo é a insistência ►o moderno, como finalidade -.rtistica". Por exemplo, um lflo.s sinaiii exteriores da mo– itl.ernidade ·em- poesia, o ver- 1,;o livre, já está em Marlowc l,e Shakspeare, como está ain– ~a. ac;:escente-se de passagem, ao rango de t ooo a lirica es– lP;Jnbola tradicional. CP. Hen. ri.e; uez Urena, La versifica– _eión irregular en la poesia eastcltana,. Mas .a insistência. lllO processo, e sua como que lsisti;;natização convulsiva. é manas, sociais. Uma delas, apontada por Eliot: nossa. sen– sibilidade rítmica já não é a mesma da de nossos ante– passados, porque foi modifi• cada pelo ruido do motor a CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE gasolina. - Atenção, porém: o poeta moderno não é simplesmente aquêle que canta a máquina ou a cidade tentaculal', e po– de muito bem suceder que ês– se o não sroa. Moderno se di• rá antes qaquêle que se im• penhar "em pôr consciente– mente o mundo interior da imaginação criadora em uma certa relação com o ambiente contemporâneo, desde que, pe. !o sentimento, haja percebido que a relação existente não é satisfatória". d'<\de, a beleza fantástica, ·a a– parente inumanidade dos fe– nômenos da chamada "era do :maquinismo". Sua comovedo– ra tarefa consiste pois, não em tornar inumana ou desumana a poesia, senão em recusar a idéia de ser inumano o mun– do em que vivemos, de aço, vapor, energias cósmicas: A máquina fica SEndo um sim– bolp poético das paixões hu– manas; poetfsa-se o sonho da máquina, já que tudo é sonho, e uma grande cidade · não é mais que um enorme conjun– to de sonhos mesclados e su– perpostos. Os sonhos de gló– ria napoleõnicos deixaram em Paris sua ma-rca física, o Ar- Considero . a definição me. · co do Triunfo, e "sob as gran– delar, e aplicável a _qualquer des botas do sonho alemão tipo de artista moderno, de durante a ocupação, arde a hoje como do passado mais pequena chama votiva do Sol– remoto. O novo não será mais; dado · Desconhecido" - outro portanto, que uma nova rela- sonho, ou outro símbolo, que çã.o estabelecida entre as coi. perdura. "Em algumas secções eas e nós. da cide.de a vida dos pobres, Prossegóindo em sua expe- isto é, os sonhos e as aspira. siçã-o, Spender anota que pa. ções dos pobres, estão enre– rece caber umã função geral dados nas linhas mais rigl– à poesia moderna: & de inte- das e poderosas . dos sonhos grar- no mundo poético a feal- de seus exploradores. Não obs- tante, tudo é sonho, e a. única esperança da humanidade é sonhar um sonho melhor, bus– car uma felicidade maior e menos egoística, desvanecen– do os seus pesadelos". A essa _luz poética de Spender,. o pró– prio marxismo não é mais do que uma teoria de interpreta– ção dos sonhos, aplicada. nu– ma vasta escala a toda a so– ciedade, e não na diminuta proporção do indivíduo huma- ' no. Menos artificias do qu& pa. rece à primeira vista, a con– cepção do nosso ensaista a– poia-se na ve'l'iflcação de que vivemos sõbre dois niveis: o interior, fluiáo e movediço ao sabor de nossa fantasia indi– vidual, e o exterior, onde · o produto dessa fantasia se de– posita cristalizando-se. Assim, máquinas, guerras e impel'ia– lismos são apenas a cristali• zação, no tempo e no espaço, de nossos sonhos, ou pior, de nossos pesadelos. Aparente– mente monstruosos, tais pesa.– delas solidificados são ainda humanos, humanlsshnos; ape– nas, preferimos considerá-los fora da humanidade, quando já não temos força· para nos furtarmos a eles. E' o dra.ma da era maquinista, o drama por excelência moderno, de que o poeta de hoje t-em uma trágica percepção. · Aqui intervém o "realista social", e propõe ao p0eta que transforme esse pesadelo, Mas o Spender experient-e de 1948 não a.tribui tal função ao poeta: ao cuidar da transfor– mação do sonho, deixaria ele de sonhar, aderindo à crista– lização, e passaria a ser mero propagandista: sairia do nível ,interior para mecanizar-se "em tarefas construtivas e externas". E' certo que o artista mo– derno se tem pJ:'leBtado a es– sa experiência. Como é certo também que impulsos contra– ditórios costumam · sacudi-lo. Assim, o caso de w. H, Au• den, citado por Spender, e o dele próprio, como o de ou– tro.s grandes poetas de sua geração, que passaram do so- . cial .para o subjetivo, do po– litico para o metafisico - "períodos de expansão e de encolhimento". J' u s- ti fica Spender a · retração ~e Au• Resta, para Spender, o exem– plo m-odernista de Ap0llinai• re, que ·procurou extrair do -maquinário e da cidade nova toda a gama de sensações es~ . téticas e -humanas que eles podem proporcionar: seus poe. mas dão por sua vez a sen– sa~ão de viagem - "mas li uma viagem triste, com pou-, cos lugares de descanso". . ~ nomeno do modernismo con– mporàneo, que se aplica em mar um caso particular de ersificação e aprofundá-lo até seus limites extremos, por to como um dos recursos tl:;ticos que melhor poderão exprlmir o que há de irregu– lar, de extravagante, de con– tw·bado .em ·nossa alma dita MQTIVOS DA ROSA De tudo isso conclui Spoo.. der que o modernismo se ex:◄ tingiu, à falta de finalidade~ já não · é contemporâneo. O artista moderno era um eugu• lidor de espadas, às vezes do grande potencialidade, pois tinha d,e devorar até turbinas e metralhadoras. Suas armas de .ação e reação eram a sea– sibilidade e a personalidade•. Não bastam, no mundo de ano-:ii:!L'1ia. . Se Omar . chegasse esta manhã, · como veria a tua fac.e, Omar Khayyam, tu, que és de ·vinho e de romã, Eu deixo aroma até nos meus espinhos,. ao longe, o vento vai falando e,m mim , 1 E por perder-me é que me vão lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim. 5. o . hoje. Ea que distinguir, contudo, entre forma é espirita moder– nos. Para. Spender, o ver.so livre de Whitman é mode1·. no, porém sua. poesia não o é . Esse verso livre norte– americano era à Guerra da Independência ·dos Estados Unidos projetada tormalmen– te na literatura: não sendo esse-11cialn.ente moderna a. e ;ensibilid9.de do cantor de Leaves or Grass, os poemas a ela não se ajustam, resul– ltando muita vez em enumera• 4:ões cacetes, superficiais, ex– ternas. Whitman, , em sua poesia. "revolucionária", aca– t>a lembrando-nos Tennyson. Ao passo que Baudelaire, fiel à ti· dição e mesmo à con– ver.çao formal, revela-se-nos perturbadoramente moderno, e pai da. poesia moderna: seu conteúdo, sim, é a própria. ,vida moderna: "a experiência do tédio, a humanidade, a fei– tura, e a beleza da cidade moderna.". e, por orvalho e por e1pinho, oço de espada e Aldebarã l _ Antes do teu olhar, não era, nem será depois, - primavera~, ~ois vivemos do que perdura, Ao fim deste imperfeito re.., ·,umo haveria qu~ discutir: oom o nosso poeta a cadu• -0idade, que ele proclama, da um estado de espilito, que não pode ter se esgotado, co.,; mo não se esgotou a reali– dade de que se nutre ou que reflete. Admita.mos que um grupo de poetas ·atingiu, por. via individual, a verdades ·que encerram de algum modo o ciclo algo romantica do snpdernismo conceituado sob o ãnglo que acabamos de ex– pôr. Não é menos certo, con. :tudo, que o processo de de– sintegração dos p,esadelos es– tã apenas em começo, e a poesia, oomo as artes em ge– .r-al, e como o pr6ptio homem, tem de descobrir uma salda para a claridade. As verdades particulares a que atinge um poeta não se contagiam obri– gatoriamente aos demais, que precisarão descobri-las por si mesmos. De um modo geral, o território "moderno" está ainda por explorar, com to. dos os ·seus escuros enigmas. Não está morto o que ainda não começou a nascer. Se Omar te Yisse esta manhã, -tal-.ez sorvesse com meiguice teu cheiro de mel e maçã . Talvez em suas mãos morenas te tomasse, e dissesse apenas: ''E' curta a vida, minha irmã".-1 não do que fomos . Dêsse acaso ido que foi visto e amado: - o prazo do Criador na criatura. ··•i 4 .. • Não te aflijas com a pétala que v.oa : também é ser, deixar de ser a~sim. Não sou eu, mas sim o · perfume que em ti me conserva e resume o resto, que as horas consomem. · Mas não chores, que no meu dia, há mais sonho e sabedoria , Moderno é, pois, o que ca– racteriza a vida de hoje, no que essa vida se diferencia da vida. em qualquer outro it,empo ou em qualquer_outro ponto. E', numa palavra, .a. Jndustrialização, com suas con– r.equências psicologicas, hu• Rosas verás, só de cinza franzida, mortas intactas pelo teu jardim. · que nos '!'agos sééulc:,s do homem. _Uma massa ht.mana percorre a Broadway. mas é o P(?VO que viva o Senhor dos Navegantes. que briga para recebê-lo, quando finda a procissão so– bre as águas o Cristo é entregue ao povo do Salva– dor para que o povo O 'conduza à sua Igreja, Mas é pena, realmente, que não surjam pinto• tes. grandes pintores. capazes de surpreender a graça, o ritmo, d.esses homens e, prineipalmente. dessas mulheres, reunidos para a festa dos Nave– gantes. Mesmo os que não sabem "f"er como eu, os que, de preferência, se contentam em contemplar. mesmo esses. são sacudidos pela beleza do quadro, pela veemência da alma popular, pelo capricho dos vestuários que. pobres e bem pobres, às vezes. dão uma impressão de luxo coral, de. luxo do Oriente. E' indefinivel o que o negro aprofundou no en• ó. o colorido do povo. deste povo da Bahia . Realmente, grande seria uma arte capaz de sur– preender _o colorido do povo. Mas onde estão os pintores que não pintam esses espetáculos humanos e nossos, que não fixam essas cores que estou vert.• do agora, neste primeiro de janeiro. das janel4s da cai,:a de Manuel Pedreira {Ma~e~a, ~omo 105!0~ ~ Cecilia Meireles - l~~AGENS DA BAHIA II AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT (Copyright E. S. I .• com exclusividade para a FO- · LHA DO NORTE, neste Estado). conhecem em Salvador). Que multidão alacre e agitada J A nota rubra predomina, E ela vem prin– cipalmente das sombrinhas vermelhas, das nume– rosas sombrinhas vermelhas, com que as baianas se defendem do sol. Mas as cores são as cores mais variadas e há um ritmo incomparável na multidão, no povo. nesse conjunto que é injusto chamar de massa. O que há de alto e de civilizado, realmente, na Bahia. é que a Bahia possui o seu povo, é que a Bahia não é habitada ou ocupada pela massa. Du– vido que fosse possivel a alguém consciente do va• lor, da precisão e da necessidade de ser justo escre, ---: ··- --- - - - -- · - - -:-, -·· - vendo, duvido que, a um escritor de verdade. fosse possivel iniciar a descrição da festa do Bom Jesus dos Navegantes. da seguinte maneira: "A massa baiana estava reunidà em frente à: casa de Maneca Pedreira". Massa é o que se funde, é o que se tor• na matéria susceptível de ser modelada ou condu• zida; povo é o que réunido. conserva a individu_aU, dade dos que compõem o conjunto ou a reuniao. canto da Bahia, mas deverá ter sido grande também o que a ferra baiana aêrescentou .em qualidade ao negro . Como é diferente o preto de Salvador d~ preto de outros lugares, do aclimatado, por exeln:• pio, nas Indias Ocidentais. Nada, no bai~no, lembr_a a avidez. a sofreguidão dessas popula 1 çoes de "!-ri– nidad e Barbados. em que o visitante e perseguido, solicitado de todas as maneiras. A preta mina qua . vende acarajé ou frutas, na cidade-baixa, em Sal• vador, é modelar na sua digniq.ade. Há ~ualqu~t coisa de senhoril e de dono da terra 1!º mais h~mil• de dos negros b"aianos. E' bastante ve-los canunhal' na rua para sentir que são livres, ou conversar com eles para saber que são naturalmente bons. sem _(Continue. na 2.a Pã:i:->,

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