Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1949

.2.ª página FOLHA DO NORTE Domingo, 13 de fevereiro de 1949 falha do iatt!r DU/\S coLEÇOES OtRETOR PAULO MARANHÃO ~SUPLEMENTO LITERATVBA DE CONTOS ORIENTAÇÃO Oi HABOLDO MARANHÃO má-lo-ia .''o livro da piedade e à.a noite". Com efeito, a maioria dos cont@S Q.l:le o constituem passam-se à noite: noite perdida em uma esta– çãozinha onde o trem f@i obrigado a pa.rar em conse– quência ,de um acid.en.te ; coi– te das negras qcilombolas na floresta tropical; noites da Bahia, e noites .io Rio. Natu– ralmente: a noite -é a gran– de tentaçã9 do Brasil, porque adoça a violência das cores, dá aos ~seres e às coisas uma doçura valuptuosa.. Ma.s, .em (Conclusão da 3:a pág.) roga.ç!i<> milenar que eles con, tinham". Assim, à noite da terra corresponde uma outra noi• te, a das almas tenebrosas, dos espiritos rudimentares, qit:e permanecem. eternamente opacas a si mesmos, e não passam. espiritt:ialm.ente , de um fllilXO negro de sensaçóe!'I ,e de imagens. E' por is• so que os olhares são interro• gações !.ancinantes. esforço!& para rasgar a obscuridade , e adivinhar a que se passa atras das vidraças <la nosso mun– do llum.ina<l0. Carlos Lacer• da conseguiu . mui.to bem rea• Uzar essa descida às vidas o'b,seu,ras, .e consegue levar- COL.A.BORADORES , - Al;varo L1Da. Aloll54i Rocha. Almeida Fischer. Alphonsua de Gu.ima– riea ftlho, ll11:guskl Frederlóo Schmldl Aureliu Buarque de Holanda. Benedltii Nunes. Bruno dr Menees, Caries Dnunond de Andr.ade; Ca.uby Crui, Cecllia Meireles. Cécll Melra, Clêo Bernardo. Cyrc dOI A.a,IOI, O&rlOI Edna,do. DanJel Coêlho de Souza. ~ Paulo Mendea. Femando Fenelra .tfe ,Loana., Ga– rfbaldl BruU, Raroldo Maranhão, .J.oão Conde. Lev, Rall de Moura. LYo Ivo. José Lln& do Rêgo. Joio Mendes. Harquea ,Rebêlo, Mário Faustino. Manue·J Bandeira, Mas ,Martim. Maria JuUeta Drummond. Murllo Mendea, Or.lando Bltar, Otto Maria Carpean1. Paalo Pllnlo, Abreu a. de Souu Moura. Roger Bas– llde, Ribamar de-1Moara. Ruy Coutinho. RIIY Gul• lherme Barat&. Sergto MiUei,· Sultana Levy e Wll- 1ou Martin& · Carlos Lacei-da, a noite -é uma imagem da piedade: disfarça o que a misérla tem de mais atroz, funde as desigua,id.ades muito chocantes -em 'Cllla grande ternura obscura, é, realmente, a noite democrá– tica . Além disso, -é a co:nso– ladara, a i,rmã negra de Cruz e Sousa, que mud~ a dor em . melancolia. Stella M a r i a aguarda a noite como .uma amig:a in.tima qi:e .acaricia .:eu co:rpa_ta-tu.ado, e- .a germi- 1a,ção das plantas notlil":aas aistuia-se à vida das negras iue fogem do feitor: enfim, 1 noite envolve como um su• dári.o Xana11, que escolheu a obscuridade para morrer. Carlos Lacerda pôs todo seu amor nesse livro, sel:! amor pelos humildes, pelas crian– ças Infelizes, pelos campone– ses perdidosa nas cidades ten– tacUlares, pelas joças que não mais · são amadas, por todos as iitObres que moram nos morros, nos becos, nas ruas tristes das cidades grandes. Felizmente, não mistureu ·nos seus conrto-s cGnsideraçães so– ciológi-cas nem de ideafagia11 J!)oliti.cas, e (ilt1arufo s.e ooahe• ce o autor, com seu udar e si:a generasídade, .semt&.se que isso nã'G lhe deve ter sido ta.– cil. Mas c@mpreend.eu ., certa– menite, qne era melhor fazer entrar nOI! salões onde .seu li– vro será lido, pefo sortilégio da evocação literária, todos aqueles pequeninos ql!e ordi– nàriamente não são neles ad– mitidos, nem -mesmo pela por– ta de serviç() - coon, suas agon.ias · silemciosas, ·sua ma– greza - ·e que ,mais eficaz seria unpi>r assim su:a presen• ça a: nessas corações -como– vidos, portue saJbe que de to• das -essas :selll!bras &cumula– "ifas, nascerá "11ma luz peq1,1e– nina", a laa dos olhes de que -fala: "Irradiaram tama– nha pergunta que illcxio o . c0rp0 em Q.ue se en,gait:avam passava a depencler da inter- . nos com ele, até que desco-– brlmos a pequena chama cen– tral que 1i brilha sempre. "A 1ul'l peqaenina.,, 1tue existe den.tro de cada ser hwnan(), como um fogo sagrado dla1:i,• te de um altar divino, e cuJa extinção é · o .maiar cr~ per1n,i,tido llO homem... ESQUEMA DA ;EVOLUÇ.ÃO DA ·SOCIEDADE PARAENSE '(Conclusão da ult, pa.gina) FREJRVNHA {Conclusão da' la. pa.g.) A unida·cle natural (la · U.iagua– gem é. . a oração, A unidade natural da linguagem é D pe– ríodo. O equivoco provém de se abservar o perioáo na sua complexidade atual, conslde– rã-lo complexo. !Não .escr.ieça– mos aquela sa,gaz .obsel'IVllção de Wundt de ·que a lin.gua– gem nasceu, não com as .sim– ples palavras, mas com "as ·expressões .de representa~:Õi;>S totais". E' claro que essa "ex– pessão de representação total" ·podia estar manifestada numa palavra .só, mas ai já não se 'tratava 'de simples palavra-. .E' o caso do: "Chove". Mas .se essas "exnressões .d-e re– presentações tõtais", de Wundt, não .se constifuiam de sim– ples palavras, também não se constituiam de simples ora– ções, censtituiam-se do pe– riodo. A prova é que so– mente quando a .oração é também um peri'odo - ,oração ab,soluta, independente - sig– :Difica "a ,expressão de .r.epre– .seniação total" de Wundt E nlío é exatamente a essa "ex– pressão cre representação to– tal" de Wundrt, que nó.;:. -cha– mamos, cem ma.is simplicida– de, de pensa,menta ? em seus livres, equivoco que tem contribuido para dificul– tar a aprendizagem de uma lingua já por si difícil, é a separação rigida qu~ esta~e– lecem entre lexeologu e .sm– taxe. -casG a rorttma i'he sorris.c;é, fl qt~e estava certo, era que paga– ria promessas com uma parte, e, sobre a outra, depois pen-. sa;ria .. • de o ouvi-r. Os alhos dela te encltlam de lágrimas, e suas mãos desejav,am consolar com 'Ullla carlcia aquele orfão. _M~ não pareceria bem. Sob o pretexto de que 0 aluno do curso primario não ;:iode ainda penetrar nos - se· gredos das palavras combina– das reduz-se seu ensino . ao das' chamadas· palavras isola· das (como se pudesse haver cousas isoladas no mundo !) . Quando se estuda o substanti• vo não se estuda logo a sua função no perio\o, ·o que é certamente um erro. As no– ções de sujeito, predic'ado, complemento, ficam inteira– mente desligadas, adjetivo, ver,bo, adverJ>!o (observa-se isso nas gramaticas), dificul– tando ao alun o do curso se– cuadário o necenário e per• .feito entendimento do maquí• nism'> e do mecanismo da ex· pressfo) . lsso não acontece natural– mente por acaso, nem por simples gosto pes.soal dos se– nhores educadores . . Trata-se da mentalidade metad'isica, anti-dialetica, qúe há interes• se .em prestigiar e manter. Ele também tinha confiança na colega. Gostava dela, co– mo g<Jstaria - :de sua mãe, não dizia, porque Mariinha era muito moça - mas como gostaria de uma irmã, se a tivesse. Porém nunca oonhecera nem mãe nem irmã. Quando a-briu os olhos para a vid.a,, encontr.Gu o mundo como .seu lar. Ma• riinh.a sa'bia disso, contava tudo a ela. Coatara-Ihe como na– quela manhã, em que, perseguido ,pelos policiais, só ,porque jogava bola na rua, entnrra pela primeira porta que viu aber– ta. Nesse tempo era moleque, moleque perdido, mesma, Os companheiros sumiram-,se. Ele escondeu-se, uni.de a.o mw-o do desvão da escada, trêmufo, esgazeade, só ·ouvindo llm ru– mor sem equilíbrio. De repente um vuJ.to de negro .dt!.ieeU para fechar o portão. Ele, vendo-se descoberto. tentor fugir, porém mãos caTinhosas prenderam as suas e o recolheram. Então, ficou por ali mesmo, apesar de se tratar de um arfa• nato para meminas; servia na limpeza, comparecendQ às au• las também, e, por graça, arranjaram-lhe um uniforme, um vestidinho azul-marinho, pregueado. Adorava a i.rmã Mer· cêdes. Andava como um cãozinho atrãs del-a, presiativo e hmnilde. E, procurando imitá-la em tudo, foi que adqruriu aquele andar (l}Uase 'l.'olatil. e aquelas mãos sempre en'l:r.ela· ça-das, os dedos engrenados mas os polegares movende-se, co– me se Tedassem entre si as contas de um ;rosario. Mel~ se sentia· amado, e, mais do que isso, protegido por ela. Muitas vezes passava-lbe pela cabeça construir um lar u. lado de ~ariinha, e im~ginava cenas domésticas, ambo, ·CU dando do Jardim, ambos allmentanda as aves do quintal;J el_a estendendo a toalha na mesa, ele carregaml.0 os pr,atos: ela tr1-~otando, ele desenrolando o novelo de lã .. , Mas só de• Ji)01_s, quando. as coisas ~elhor~ssem, qiUando ganhasse na lo– teria ., Também, nada amda dissera a ela, que não ia empa- tar filha alheia. • . · Se casass.e algum dia. seria com Mariinha. Só ela ' era meiga para ele, só ela sabia tudo da sua vida. Contara-llie tudo .. . isto é, o que pudera ccmtar, sem se sentir muito hu• mia.had.g. Uma coisa não poderia, nem desejava cantar a l'vla• riinha. Queria itanto perder isso. Livrara-se do colegiD. Vencera muita timidez. Cordgira-se. de de.féttos que o toi:• navrm ridículo. como aquele das mãos, obrigando-se a man• tê-las nos bolsas, por suprema força de vontade. Só "da• quilo" não se podia libertar. Como justificá-lo a uma espo– sa ? Ei:_a tão devato, possule uma fé tão stncera e profunda, mas nao se concentrava ao rezar. Era preciso que .estivesse sei. Que se certificasse de que ninguém o espiava. Lutar consigo mesmo, -começar e reco• meçar, insistir, fazer um esforço sobrenatural para vencer, e, afinal, era v~ncido. Não. podia dormir sem orar. E não conseguia orar. concentrar-se na prece, sem aquele tabú. Qaase chorando, d e ansiedade e l(ese.~pero, constra1:igido nias exalta_do, vestia o hábito negro, punha o mante na cabeça, e, entao. se prostrava, possuido da · centelha divina, 'Outro .eq :w.vo.co de nassos mestl"es. em suas catedras, ou ticou a ponta ela [ingua entre os lábios: - E', as pombas voam à frente, Mas f.cha que devo permanecer em Riva, senhor burgomestre ? - Não lhe posso di.zer - respondeu o burgomestre. - O senhor está morto ! - Esteu - a.firmea o cz.çador, - como pode ver, isso aconteceu trã lon:gos anos, e deve ter sida, em um tempo incrivelmen~e longinquo. Cai d·e um -rochedo na Fleresta Negra - fica na Alemanha, - aa persegu-k '\l?D.a cabra montês. Desde aquele momento e.;tou morto. - Entretanto, o senhor está vivo tam– bém - observou o burgomestre. - De certo modo - continuou o caça– dor - de certo modo estou vivo ta,Ji1.bém. Minha barca fúnebre errou o caminho, uma falsa inclinação do :eme, um descuido de p iloto, um desvio através de minb.a ;patria maravilhosa, não sei o que foi; sei apenas que ·fiquei n;, terra. e desde então mi~ha ·barca vaga pelas águas terrestres. Assim, eu que só queria viver em minhas men– tanhas, viajo depois de minha merte por todos os .países da terra. - E o senhor não participa do além ? - perguntou o burgomestre, franzindo as sobrancelhas. - Fico sempre na grande escadaria que condu,z ao alto. No patamar infinitamente vasto erro em todos os sentidos, às vezes, para 'cima, às vezes para baixo, às vezes para a direita, às vezes pal'a a eS<il,uerda, sem jamais 111e deter. O caçador transformou-se em borboleta . Não ria. - Não estou rindo - protestou B bur• gomestre. - E ' exato - prosseguiu o caçador - Nio me detenho nunca. Mas, quando tomo Impulso, e o sup1·emo portal começa a apa- Ficaria no eolegio eternamente. servindo no que fosse preciso. se irmã Mercedes 11ã0 hol!lvesse morrid0. e n.ão hcm– vesse daí. de repente, se levantado em volta de si, aquela hostilidade invej asa. · El~ gostava de falar sobre o colegio, e Madinha ,go~tava o GRACO (Conclusão da 3a. pagina) recer em sua luz, desperto :em minha vetha canoa, qu-e se esquiva solitari111IDente em nãa .sei que ·águas terresk:es. O erro capital de minha velha morte escarnece em torna de mim, na cabin.e. Júlia, a·.mulher d@ barq:ueí- . ro, bate e vem trazer e, minha padiola a bebida matinal do lagar, cuja costa borde– jamos. Estou estendido numa tábua, tenho um lençol sujo - e não sinto a menor ale– gria em me contemplar; minha cabeleira e minha barba, cinzentas e negras, se mistu– ram e se embar:açam inextricavelmente mii· nhas pernas cob11em-se oom um grande -cka[e de :millllher, de uma sêda estampada de flo– res, com longas franjas, À minha c.abeeei– ra estáa dispostos ciriC>s de igreja, que pro• ~ ..tam sua luz sobre mim. Na parede em frente está uma pequena imagem: evidente– mente um homem da :mata, que me visa, ar• macio de lança, e procura proteger-se atrás de um escudo enfeitada de pinturas esplên– didas. Nos navios encontram-se muitas pin– turas idiotas, mas esta é o cúmulo da idio– tice. Através da vigia da parede lateral, o ar quente da noite da sul chega até :mim, e escuto as ondas 'batendo contra o barc·o ve– lho. Aqui estou estendido desde um dia lon– ginquo; nesse dia, eu, Graco, caçador ainda vivo, perseguia uma cabra em minha Flo.– resta Negra natal. e levei uma queda. Tudo se passou conforme a regra, Corri, cai, san- .grei toda o meu sangue numa ravina me vi morta, e essa barca deveria ter-me 'con– duzido para o além. Lembro-me ainda c@m que alegria me deitei pela primeira vez S()– bre esta tábua. Nunca as mcmtanhas 'me ouviram soltar um grito semel:hante ao que escutaram estas quatro paredes, que me pa.– reciam ainda um tanto crepusculares. Eu tinha aceitado alegremente a vida, e alegrem.ente -aceitara a morte; antes de sut;,ir a bordo, senti uma felicidade profun– da em atirar· J!)ara longe de :mim meus far– dos miseráveis; deixei cair a ·cartacheira, a saco, o fuzil de caça, oojetos que eu sem– pre carregara com orgulho, e enfiei-me na sudária, à maneira de uma jovem em seu vestido de noiva, Ali fiquei estendido, es- · peranda. Então aconteceu a desgraça. - Um mau destino - comentoa o bur– gomestre, erguendo a mão, como a conjurar qualquer coisa. - E B senhor não terá um pouco de culpa nisso ? - Absolutamente: eu era caçador. Será isso uma culpa? Eu ocuJi)ava um emprego de caçador na. Floresta Negra., e nessa <é}3()• ca. ainda havia lobos, Eu espreitava, atira– va, abatia o animal, tirava-lhe ·a pele: será isso uma culpa? Meu trabalho era aben– çoado. Cham-avam-me: "O Grande Caçador da Floresta Negra". Será .isso uma culpa? Não sou competente para decidir - disse ll.!T mi m .,,.,,,. n não há nisso mal algum. Quem é então o culpado? - E' o barquelro - respondeu o caça– ·dor. - Ninguém lerá o que escrevo aqui, ninguém virá ajudar-me, mesmo q1:1e vir em ·meu auxi[io fôsse proclamado eomo urr. de• ver .. 'Todas as portas de -todas as casas fi~ cariam fechadas, todas as janelas fechadas. Todos continuariam deitados em seus leites, com o cobertor estendido sobre a cabeça: a terra inteira seria um ãibergue, na uoite. Para iss@ existem baas razões, pois ninguém sa·be nad;;i a meu respeito; supondo-se que alguém conhecesse minha existência, não saberia cfo local de minha l')assagem; e, se soubes.se , não saberia l'eter-me, nem aju– dar-me. A idéia de querei; ajudar-me cons• titui doença a ser curada na cama. Sei dis-• so, e portant,o não pedirei auxilio, mesmo que em determ1nados mamentos - aban– danado como fico aos meus impulsos, como agora, por exemplo, neste instante em que lhe falo - eu pensei muito nisso . Mas, para e:,qiulsar tais idéias, basta olhar em volta, imaginando o lugar em que me acho, e - posso oem pretendê-lo - em que ha.bito há .séculas. - Extraordinário - disse a burgames• tre. - extraordinário. E agora, pensa per• manecer con?,Sco, em Riva,? - NãC> - respondeu 0 caçador, sorrin• do. E, para desculpar a brincadeira, pousou a mãa sobre o jeelho do burgomestre. - Estou aqui, .sei apenas is.so, e não posso fa• zer mais nada. Minha canoa não tem leme, e avança de acorda com o vent<, que .sopra, nas mais fundas regiões da morte. (Do livro "La Colonia Penitentiai• re", em tradução de Jean Star<t•

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