Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1949

P E E T -- RA Pará-Belém Domingo, 11 de Setembro de 1949 N. 0 134 Senhores, agradar-vos-ia ouvir um belo conto •de amor e de morte ? E' o de Tristão e Isolda, a rainha. Escutai LJm t\dmirovel Romance !)e e;eja sabedoria ou loucura". A Cada noite Tt•istão, o louco m O r transforma-se, para Isolda, no belo jovem que é. Mas os ini- como com grande alegria e · grande tristeza, eles se ama- e com todo o pensamento na ram e depois moneram no vida e na morte., . mesmo dia, ele por . ela, ela Brangien encontra os jovens JlOr ele. "que se fitavam em silencio, E ' com estas palavras que o como pel'didos e encantados". trovador anuncia um dos mais Lamenta-se . "Isolda, minha. belos e humanos romances de amiga. e vós, Tristão. é vos– amor de todos os tempos . Em sa piorte que bebestes". "Le Rori:tan de Tristan et Durante três dias, eles lu– I seut ". Joseph Bédier canse- tam contra a sua consciencia. guiu reunir os elementos es- "Recusam qualquer alimento, ])arsos da lenda, homogeneizá- qualquer bebida, qualquer los e transcrevê-los num fran- conforto ... E procuram um ao eês moderno, mais tão cheio outro como cegos que caml– de esplrtto medieval que ao nham, tateando". Mas não lê-lo. temos a impressão de conseguem resistir por mais eompreender repentinamente, tempo . e como por um milagre, a - "Isolda, que tendes ho– linguagem dos trovadores de je ? O que é que vos ator- outrora. menta? .. A rainha canta docemen te - Ah ! Tudo o que sei me e afina sua voz pela harpa. 11 tormenta, e tudo que vejo. As mãos são belas, o canto Este céu me atormenta, P. este 1Uave, o tom velado e suave mar, o meu corpo, e minha a voz". Eis criada uma at- vida" . mosfera . Ela chora . Seus lábios tre- Desde as primeiras páginas, me;n Aproxima-se dele. Faz ficamos empolgados pelas :i- novamente a mesma pergun– venturas de infância de T!is- ta . Ela respclnde então: "O tão, seus altos feitos, suas via- teu amor" . Seus lábios se gens, sua luta contra o gignn- juntam. te da Irlanda, suas andanças à "Mas como ambos provavam, procura da bela de ·cabelos de pela primeira ve:r., uma ale– ouro . gria do amor", Brangien pro- Quando encontra e conqu:s- ~;ira, chamá-los à razão. Já é ia Isolda, esta, encantada pela tarde: "Os amantes estreita– sua beleza, nobreza, ousadia e ram-se: nos ·seus belos corpos coragçm esquece imediatamen- tr-?miam o desejo e a vida . te que Tristão chegou como Tristão diz: "Venha, então, • blimigo dos seus. Mas quan- morte". YVONME JEAN Tristão e Isolda amaram-se imediatamente, como havia dê acontecer, pois ambos eram jovens, nobres, belos, cora.jo. sos: mais do que todos os princípios que os cercavam. Sua honestidade impediu-os de trair a confiança do rei Marco . E para não trair, de– sejavam moner Juntos. Po– de-se supõr que imaginaram ter bebido um veneno. "E' vossa morte que bebestes", grita Brangier . Acreditando na vinda próxima da morte, tiveram a coragem de decla– rar sua paixão . Mas qualquer que seja a explicação dada a este amor inquebrantâvel e que assistiu a todas as vicis– situdes, que seja atribuído ao poder da mágica ou a agonia sofrida em comum, toda a obr:l permanece sempre um símbolo do amor humano. Um dos traços mais finos da lenda é a figura do rei Marco, que continúa. sempre digno, simpático, nobre, ape– sar de representar o marido enganado. Nenhum rldiculo o atinge. E' obrigado a perse– guir os amantes, mas pare- ce compreendê-los e sofrn com eles quando são compe– lidos a fugir. "Então, no fundo da flores– ta, selvagem, começou para os fugitivos a vida áspera, e no entanto, amada". Perma• necem durante dois anos na floresta do Morais . Vivem co– mo animais acuados, mudan– do sempre de esconderijo . "Sentem saudades do gosto do sal e do pão". }J:magrecem . Suas roupas se transformam em andrajos. Mas awam-se e não sentem o sofrimento. Um dia o rei Marco surpreende– os pela. sua bondade. Isolda começa a refletir. Chorá porque Trist.ão vive como wn vilão em lugar de guerrear, cqmo valente cava– lheiro . Tristão lamenta-se por– que Isolda não passa de uma fugitiva. em lugar de viver. adornada e fPstejada, num pa– lacio real . Decidem separar– se. Tristão devolverá a rai– nha ao rei Marco. Tristão se afasta. Um dia, Tristão consegue atrair um cão mágico. de to– das as cores e que traz ao ELEGIA do a leva como noiva do seu E quando caiu a noite, den– tlo, torna a odiá-lo. Pouco lhe tro da náu que rumava mais hnporta ser rainha. Antes de rápida do que nunca para a~ o olhar recebe a forma e esquece a essência tudo é mulher. Sentia-se or- terras do rei Marco-. ligados gulhosa quando via Tristão para sempre, abandonaram-sP. o ouvido :perde a música. A mão enfrentar perigos para con- ao amor" . . , - , A quistá-la. Agora vê que ades- o trovador cristão não con- Ja nao retem o eterno - nem o efemero. denhou . Lamenta-se na nau dena o amor culpado dos Ü louvor e O lamento a bôca ·abandonaran1 que o afasta da sua terra. amantes po1·que amaram-se ~a nervosamente no tomba- apesar da própria vontade e OS pés não guiam mais: estranhos fios dilllo, soltando palavras de com tal impeto que nenhuma. ódio e maldição contrn Tris- força terrestre poderia. lmp~- o corpo levam pela estrada c_urta Uo que já ama. dl-ló. E quando. após a mor- · l d t A ' -Um dia, o mar está tão cal- te dos herois, uma sarça per- e circu ar, eser a, seca e nua. mo que as velas pendem inú- fumada brota do túmulo d-:i • teis. Os marinheiros aproam beril de Tristão até a tumba , . _ . _ l)\Hlla ilha e descem do navio. de calcedonia de Isolda, re- Dança fac}!, nao vida: horror ao chao r.rrlstáo e Isolda ficam aozi- brotand_o, tenaz, cada. vez que falso vôo precoce fuga para O sAnho Jlhos com uma pequena cria- a cortam o rei Marco ordena , v • ela. Sentem sêde e pedem uma que não lhe toquem mais. O destino e a paisagem rejeitamos· bebida. A menina descobre Parece um milagre divino, san- . A ' ;wna garrafa de vinho. Isolda cionando, enfim, os agitados a rosa o riso o pranto o medo o amor 1 1,ebe e estende o copo a Tris-:. amores dos amantes. · f' 1 b t ' d t , tão em seguida. o destino de- A bebida mágica, tomada no - O Ine ave - que ro a so a erra bocha deles pois a garrafa alto ma~, aparece,_ em ~a a e que os vivos acumulam para a ·rnorte. continha o filtro mágico que obra, como um le1t motiv . E . , ,._ • .• mãe de Isolda confiara a tanto na lenda, como na inter- - Mas nos, que flor e fruto destrmmos l3rangien, a aia e amiga da fi- pretação -wagneriana., tanto na l' • , f "d d ~a, para que ela a apresen- lin 6 uagem ingênua dos -trova- que nos a lVIar;:i_ a orne e a Se e quan O jtasse a Isolda e ao rei Marco dores quanto na versão de Bê- mortos sentirmos O coração vazio? ,na noite nupcial. "Alqueles dié'r. encontramos uma expli- - lfl.!Ue o beberem juntos, amar- •cação muito racional para '1 .se-ão com todos seus sentidos encanto do filtro mágico. CtCIL MEIRA pescoço uma campainha cujo tinido aplapa todas as dores e toma feliz o ma.is triste cora– ção. Envia-o a Isolda. Mas no dla em que a rainha des– cobre que é o tinir da cam– painha que a torna tão feliz, fa-la soar uma última vez e jogá-a ao mar, já que Tris– tão a mandou para ela "por bela cortesia" · em lugar de guardil-la. Não quer esque– cer sua dor enquanto Tristão sofre, ao longe . Tristão desposa Isolda das Brancas Mãos, em um mo– mento de aberração. Nunca chegara a ser realmente seu esposo. porque é. incapav. de ser Infiel a Isolda a Loura. Precisa revê-la, a qualquer preço . Fantasi3-se de louco 1is– forme, passando no rosto e no corpo um unguento que o toma ineconhecivel e repulsi– vo. Entra no palacio e diver– te o rei e os coi-t.esões , Quan– do se dirige para Isolda, mur– mura: "Eu sou Tristão, que tanto nmou a rainha e con– tinuará amá-la. até a morte". Todos riem das suas loucuras e Isolda o maldiz. Ele faz alusões que só ela pode com– preender. Mas Isolda não o reconhece e toma-o por um feiticeiro . Ele volta a repre– sentar o papel de louco . Quer levá-la ªlã no alto, entre o céu e ll luz, na minha bela casa de vidro . O sol atraves– sá-a com os seus ralos . Os ventos não a podem abalar. Ali levarei a rainha a um quarto de · cristal, todo florido de rosas, todo luminoso da manhã". Isolda. o acusa de ébrio. "E' verdade", diz ele, "depois daquele dia tão quen– te, tão belo, no alto mar .. . desde esse dia sempre estive embriagado e de uma em– briaguês má" . ·Mas apesar destas claras alusões, Isolda tem medo do louco. Um suor ' frio a cobre quando tenta. a– proximar-se dela . Mostra-lhe então o anel de Jaspe verde e Isolda cai nos seus braços. sem mais discutir. "Aqui me tens. Toma-me, Tristão" . Não lhe dissera ela no dia da se• paração, na floresta: "Amigo, tenho um anel de jaspe ver- · de. Toma-o, por amor de mim, e usá-o no teu dedo. Se algum mensag-eiro vier de tua . ,_parte, não o acreditarei. •• Mas se eu vir este anel ne~ nhum poder, nenhuma proi– bição, real me impedirão de fazer o que tiveres mandado, migos fiscalizam a rainha e Tristão fugiu novamente . Es– tá ferido e um veneno desco– nhecido apressa sua morte. Quer rever Isolda uma última vez e manda mensageiros bus– cá-la. E' então que outra Isolda se vinga do desden1 do es– poso. Diz-lhe que a rainha não veio nó navio que está chegando ao porto. Tristão morre imediatamente. Nada o retem mais na vida. Mas a náu ancorou no por– to. Todos se maravilharam com a mulher desconhecida, de beleza nunca vista. que atrl!.vessa rapidamente as ruas. os véus desatados, enquanto dobram os sinos dos mostei– ros. Ell afasta a outra Isol– da: "Senhora, levantai-vos e deixai-me aproximar. Tenho( mais direito a chorá-lo do que vós, crêde-me. Mâis o amei". Deita-se ao lado de Tristão, estreita-os nos seus braços e morre de amor. Os contadores sempre dei– xam entehder que o amo1· dos amantes foi tão graude que não era mais um pecado. Deus mesmo parece ajudá– los, Assim a Providencia per– mite que, durante um encon– tro clandestino, percebam no lago o reflexo do rei Ma1·co e possam Iniciar uma conver– sa inocente. Quando Tristão descobre um traidor, escondi• do atrâs de uma cortina, a– ponta o arco, murmurando: "Que Deus guie esta flecha. '' E o espião morre. Isolda sai Ilesa. da prova do felTo em brasa. E' verdade que seu juramento não era falso, mas unicamente porque encontrara um ardil e pôde p1·011un ia-r palavras com um duplo senti•• do. E' como se Deus, apesar de não se ter deixado enga– nar, tivesse sentido compaL'Cão. Encontra-se, às vezes, um realismo poderoso. "Essa noi• te enlouqueceu os amantes... o amor não se pode ocultar.. • o desejo os agita, os es~relta, transborda, de todos os seus sentidos ... " .A página em que os leprosos raptam Isolda é terrivel, cruel e esplêndida. Há, às vezes, uma ingenul• dade de afresco primitivo "A rainha. teve vergonha, por causa dos presentes, e enru• besceu•• e há também hu• mor, como, por exemplo, o capitulo delicioso em que o velho e santo ermitão, cami– nhancio com suas muletas, vai à cidade comprar veiro, bro• (Continua na 3. a pág.) Aqui os mais belos sonhos não bào so– Jlhos e sim inefáveis realidades. As emoções !surgem do mais intimo do Sêr, esponl.âneas,. 1 eomo se o espirit-0 e o corpo se irmanassem :c,om a natureza inteira. A pequena cidade, 1 .eons~ruida sobre colinas, lembra um mar que ~vesse sido, por um momento, batido pel;~ ,tormer,ta e ficasse então imobilizado para 'sempre. Os outeiros ondulados arqueiam-se em direção a todos os horizontes e suas cur- 1as ?raciosas mais parecem um capricho di– vino. Arvores frondosas, esbeltos pinheiros, as flores nos cimos capados e nos pequenos arbustos, dão estranho colorido à paisagem. Caminho a passos vagarosos pelo bosque fechado e um _perfume inebriante corre da. ,)nata . Mais que isso. E' o próprio hálito dn. ~aresta que escapa das· folhas, do cerne das .arvores, da terra fresca, da galharia hwnida, e quase num assombramento sinto o arfar da '.3elva, como se fosse um imenso animal \'erdP., espreguiçando-se ao nascer do sol. Há": jl>Or <·erto um doe.e encantamento nessas har– monias tenestres, há um mensageiro oculto "!Ue, através do sol, da terra, das árvores, da ervá rasteira. das aves e pássaros, nos envia •indis,intos e celestes acordes, que apenas sen– <timos perpassar sem poder compreender. Do cimo da colina a alma embevecida vaguefa. 3>elo in1inito e não se sabe o que mais ad– mirar: se o deleitoso céu muito azul, caindo •.J)ouc'.> a pouco atê ligar-se aos horizontes, se a claridade e o brilho intraduzível do sol, co– rno a.sas tontas de luz, correndo por cima do~ mor!OS e baixando pelos vales e brancas ver- . tentes; se as verdes campinas subindo e de.~– cend,, as colinas, entremeadas de bosques ainda mais verdes e frondosos. Olhai os lirios elo campo. Basta abrir os olhos e lá estão eles no fundo das grota5, crescendo irmanados. Cheias de orvalho, suas 'folhas, como palmas, caem molemente para a terra, e os lirios abrem-se muito alvos, pu- 1•issimos, como virgens orando. E ao lado <Usso, o silencio. Não o silencio pesado e tur– vo, ir.as aquele outro tênue, como se hou– vesse sussurros e sons ininteligivelil que– brando-o por toda a parte. Paz inenarrá– vel. Brandos efluvios brotam da terra imó– vel. Meu coração bate de leve, palpita como todas aquelas harmonias e sente a vida der– tam:mdo-se pelo espaço em fora. Deus aqui está em tudo e em todas as coisas. Olhos felizes os meus que vêem como a divindade revel!l. seu grandioso poder. Felizes meus ou– vidos que escutam a deliciosa mensagem, a üelicada música que a brisa traz de mundos distantes. Feliz a minha alma que se banha. em devaneios e pressente o a.mor sem dis– tâncias e a perene alegria ! tar a música. Havia o intérpret-e que a re– produzia dos hieroglifos impressos no papel, e havia o outro, o ouvinte, que iria sobrees– timã.-la, percebê-la em suas últimas origens e 'primeira essência. Compreender o trecho musical não era ouvi-lo de um jacto, como se a música fosse um amontoado de sons, cujas generalidades apenas interessassem. Ser inté1·prete, como ouvinte, era pôr-se em contacto com a expressão musical, ouvir som l)or som, libertando-os e unindo-os, como na comunhão a alma se une a Deus . Nem o der– radeiro som, de um som já partido, deveria perder-se .. 'A semelhança de alguém que ou– visse uma narrativa absorvente, e procuras– se ouvir uma por uma as palavras e delas ti– tasse a emoção inteira que elas traduzissem . Como ouvinte, assim era. Dava sempre ~ais valor ao que interpretava a música, ouvindo– ª• do que o outro que realizava o esforço criador. A comunhão perfeita estava no que percebia., e dai a sobrenatural concepção, transformando a -música em uma nova arte, se nunca me houvesse encontrado ? Se Já• mais os meus olhos tivessem caido sobre os seus, se os seu)> ouvidos não escutassem mi– nha voz ? Como você seria ? Meus gestos, o mover de meu corpo, a idéia que meu espirl• to percebe e transmite ao seu, isso tudo que signllicação teria para você ? Como, seriam geus pensamentos, seu gosto, seus desejos se ambos tivéssemos seguido por outros cami– nhos ? Seria melhor ? Seria pior ? Sinto que seu espil'ito tem fome do meu, e eu me es– goto alimentando-o . Sua carne não ama • minha cune. Aceita, apenas, os seus ape- · los.. Meu desejo se exalta, entusiasma, ven– ce a resistência. Sômente isso. E tudo, após, 1·etor!la ao inicio, um espirita com fome de outro espírito, e uma carne sequiosa de ou– tra carne. E' uma nova modalidac1e, <lo amo::, descobrindo que acima e abaixo ainda há qualquer çoisa. Não basta ver a planicie, E' bela, extraordinária, fulgurante. E' pre– ciso também ver o que está no pico dos mon– tes e ali chegando ir além, até que, em su– cesfivas fugas, se alcance o racla dessP. tuclô. :w preciso ver o que está no sub-solo, pene• trar nas raizes das árvores, na última extre- 1t1idade da montanha aterrada, passàr por baixo do leito dos grandes rios. Viver sub• terraneamente, como vermes inúteis. !lté ai· cnnçar o nada do infinito oposto. Todo o eq,:r1to, sim, mas toda a carne também . Só deixar ambos quando sufoquem e façam per– der o fôlego . Os corpos cansados querem • paz e ai eles se deitam na planície, s.:mtm• do os mundos ocultos que descobriram. em que o ouvinte seria o verdadeiro e único mtérprete. .Ele tinha um modo especial de lnterpre- Você já pensou nisso: como seria, hoje,

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