Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1948

.. UTEAATUHA ----------------"I BELll':M-PARA Domingo; 26 de setembro de 1948 NUM. 98 ,..,, BERNANOS EA PAIXAO ·DA VERDAD A morte de um homem li• vre comunica a compreensão do q ~1e afinal significa viver em plena liberdade da inteli• gência. O escritor Jorge Ber– nanos exprimiu sempre seu p-ehsamento · como bem quís, e todas a.s vezes que julgou necessário. Dir-se-ia que veio ao mundo para dar testemu– nho da verdade. - A interrogaçiio dilemátic.a ocorreria a t:im sensato, gen• te que nunca afinou nem po• deria afinar com o desabusa– .- AIRES DA MOTA MACHADO FILHO lição no retrost)ecto de uma pode queorar. O seu espí vlda de inamolgável coerên• to de autêntico franeês q eia. A o~rigação dos que fi- no· amor da verdade intef cam é lutar pela conservação inclui a pátria e abrange (Copyright E. S. I., com exclusividade. para a FOLHA DO NORT-E, neste Estado) do Bernanos. Tais censores . de conhecer a alma humana ficaram no Jempo em que o funde-se no amor da verda– r omance não passava de fan• de. - Então, foi ou não foi romancista ? tasiosa história sentimental. E' isto mesmo. Bernanos Não lhes chegou notícia de foi principalmente romancis– que esse gênero de criação_ ta, ainda em artigos- e ensaios. liter;íria tornou-se a via mais Nessas páginas de fogo . não segura para conhecer o mis• · raciocinava nem· argumentava 1i>rio do homem. E a ansia ::Jeixava correr, na frase li– PROBLEMAS DE ESCOLHA ANTONIO CANDIDO - ""' (Copyright E. S. 1., com exçlusividade para a FOLHA DO NOR'l'E, ueste Estado) Um dos últimos números terior com alimento prepara– <ia "Revista do Globo" trans- do pelo gênio e escolhido creve uma lista dos dez me• pelas mãos infalíveis da cri• lhores romances do mundo, tica. Quem já não f,ez quin• segundo Augusto Meyer. Es• ze, vinte projetos de leitura sas listas correspondem a en• ordenada, ao mesmo tempo iraizado sentimento coletivo; compreensiva e essencia( pois uma tentação a que não abrangendo as obras indis• escapamos é a de procurar, pensáveis, desde a Bíblia até no oceano da arte e da lite- o "Ulisses" 1 E quantos não ratura, as dez o~ quinze boias começaram, realmente, a ár• salvadoras para o gõsto e o di.:a tarefa, engulindo Home• entendimento . . Um rol, ga. ro a prazo fixo ou marcando rantido pela responsabilida• data para concluir a Ieiturà. de de qualquer nome ilustre, da "ll':tica"? _í:rro e .·ilusão, tranquiliza e conforta, dan- porque se "o desvão do te• do-nos a impressão de que o lhado é infinito para as an– conheclmcnto e a sabedoria · dorinhas", para nós, a nossa - tão distantes, tão inacessi• grande aventura pode encon• veis - . fornatl).-Se de repente trar-se nµm texto ausente 'de delimitáveis, ao alcance da qualq11er lista conscienciosa . nossa mão. Lidos os dez me• Reciprocamente, o fato.de en• lhores romances, ouvidas as . f.rentarm_os um grande escri• dez melhores sinfonias, dige- _tor conhecendo de ante-mão ridos . os dez maiores filóso• a atitude conveniente ("Ah l tos, é como se abreviásseinõs, .S:hakespeare") pode comproi– por milagre, as dores do im• meter a · espontaneidade do previsto, as i-ncertezas da es• nosso ·prazer . . côlha e todas as vigílias A sorte - grande sorte . exa_usti~as. Algum; meses . de está ein descc,brir, por acaso, aph caçao - e a sabedoria, ou _sem ·preparo, um escritor. de a beleza, ' penetrarão triun.: primeira água, mas que âes• talmente . o nosso espírito, em · conhecíamos como tal até es• fileiras disciplinadas e profi• ta primeira leitura fortuita, c uas. e que nos deslumbra como Há em todos nós este so- um raio . Isso acontece quase n ho racionalista de · "Reeder's apena·s na adoléscência, e po– Dige:.1(" - esperança peda- risso mesmo fica em nossa ,gógica de saciar o abismo in• (Continua na 3."' pãg.) vre, o rio da paixão. - Quer dizer, então, que era um . apaixonado ? - Justamente. ' Ai dos frios, que nem pa– ,ra vomitados servem. A com• penetração ãa verdade exige a veemência da . pai:x:ão. Como não ser assim, se seme• lhante a ti tu d e é . sim– plesmente h e ró i e a, nes• te mundo certamente de mi• sérias e mentiras, mas prin– cipalmente de com,placêncla, de condescendência e de me• do ? Com Bernanos, não. Dei• xava de st:- tudo, só para ser franco, para distinguir, dan• do nomes aos bois, todos os êrros, particularmente os que se dissimulam à sombra da verdade . Assim procedia, não por nutrir o orgulhoso· nega– tivismo 'do fustigador de cos– tumes, mas porque se inflama– va a esperança de que a ima• gem e semelhança de Deus, nunca se aviltará inteira• mente. Suas ·palavras não dístilam fel; vibram de vee• mência . _Precisamente por esse mo– tivo, ainda em simples co– mentário de jornal se mostra, acima de ,tudo, romancista. As idéiJlS, impregnadas . de unção <ie humanidade que a sin.ceddade derrama, vivem para influir, como se fossem personagens . O Im,peto cria– dor transfunde-se no tom poético e ·na intenção apaixo• · nada. Coitado do professor que uma vez lhe arguiu a falta de sistema. Não compreendia que a intuição artística, mui– to mais compreensiva que o celebrado bom senso, 0 ad- das idéias e das corresponden. humanidade, passa a ocup vertiu da vanidade- das ideo- tes normas de atitudes. o lugar que lhe comipe Iogias. Ainda as melhores No caso de Bernanos, se nessa força de sedentos pecam, por estreiteza de vi• esmorecer a veemente paixão ·justiça, · perenemente atuan são e pela irremediável into- da verdade, a culpa não será Manifesta-se, em toda a s lerância. Nem foi por outro sua, senão -inteiramente nos• significação, agora que, motivo que o irreconciliável sa. Pascal, Blois, Jaurrés, Pe- têrmo da passagem, se P inimigo de todas as formas · guy... Bernanos. Vem de faz a fase terrena de sua p de tirania ditatorial, encerra- longe a corrente que se não gação e a outra principia. do o ciclo da resistência sem lógica, heroicamente apaixo– nada, não quis filiar-se à ~fac• ção de De Gaulle nem a ou– tro qualquer partido político. A sua atitude desnorteia a quantos ,se contentam com uma bússola, como o transa• tlântico, tão imponente -quan– to inconsciente. Desnorteia o burguês pontual e de _idéias bem classificadas. Nisto Ber– nanos chegava a encontrar verdadeiro prazer. Ponhamos "diabólico prazer" • como tal• vez escrPvesse o próprio au– tor do Diário de um pároco de aldeia. Situacão DeJulien Bend .> • - FRANCISCO IGLESIAS - (Copyright E. s. l, com exclusividade para. a FOLHA DO NORTE. neste Estado) J'ulien Benda tornou-se no• o clérigo, defensor da id me comum nos debates- de pura, atento só aos valo jornais e revistas dos gran•, permanentes, preso aos c des centros literáx:ios. Sua ceitos abstr;itos qi.:e são a obra é àmplamente disct:ti• rantia da ordem da int 'd.a, provocando reações vio- gência em luta com as vár lentas e exaltações de entu• ordens contingentes que p siasmo. E' raro um escritor tendem dominio. Só a int adquirir tal posição, conquls- gência é valor absoluto, e tada quase sempre por se exerce no campo do i Católico, sabia rir do bea- motivos extra-literários; ra- . Em contraposição, existe tério. Anti-capitalista e anti- ro ainda mais no dÕ· leigo, preso aos aspectos p fascista pt·ofligava a "sedução minio do ensaio, gêner.o que ticos · e aos interesses ma das direitas", comi\llll entre só consegue público quando riais : O reino dos leigos é certos homens da igreja, mais trata de assuntos sociais ou- mundo em que vive, tal cuidosos de prestígio para a politicos. Tornam-se conhe- mo está, enquanto o clér religião que em fazê-la ex• cidos os pregadores de certas deve exclamar que o seu r pa.ndir-se sem meias medi- causas, principalmente os que no não é deste mundo. das, inclusive nos aspectos defendem idéias extremadas. evidente que a afirmativa descaroáveis para os podero• O nome de _.Benda, antes supõe crença no sobrena sos de todos os setores: o po• lembrado apenas por pequeno ral, po1s é feita em sent lítico, o. monetário, o bélico. circulo que ·se caracteri- simplesmente humano. Mostrava quanto andam, lon- zava como dis-:reto e dis_.. ta-se de fazer da inteligên ge da verdade e da justiça, tante de tudo, ae:ora . é, do pensam_ento puro o va em medida equivalente, o comum. Antes só tem.• ·máximo; a razão nunca fascismo, o comunismo e o peramentos como o seu o co• assim prestigiada; Benda e n e o -liberalismo capitalista, nheciam e st:.portavam; ago- feriu-lhe a dignidade mpis que prega uma doutrina fol- ra todos o conhecem, embo•' ta, endeusanao-a, quase . gada de novo conceito da so• ra poucos o s.uportem. O au• atitt:.de levou-o logo ao berania nacional, só par.a tor que sempre constituiu ca• cesso, e ·ele passou a ser p uso externo "porque, de portas so literário• ou psicológico, gador exaltado. Acusou e a dentro, pratil:-a o seu na- · com o desenvolvimento de fúriíl a todos que seguem cionalismozinho, mescla de sua obra passou a ser caso sentimentos, guiando-se p orgulho nacional e pragmati• mais geral, e é hoje símbolo afetiyidade e não pela lógi co ingênuo . de certa atitude humana. O abandQno da razão pa Quando morre. um homem .Benda corr.eçou a desper• céu-lhe o mais negro dos assim, a sua presença entra tar as atenções pela crítica Il'!es. Paradoxalmente, nre a infh:ir mais instantemente que fez ao homem de letras;.. com paixão· o . culto da ra do que nunca-. Avulta-lhe a estabeleceu que ele deve ,ser (Continua na 2.ª pág.) · • Compensando as dezenas e ' ·· · dezenas 'de monstrengos que A se • edificam no Rio, sob a ' élassificação de arquitetura · mqderna, de vez por outra MISSA DE PORT-INARI neis, inclusive de um dos Washington. As próprias colunas s planas, sem qualquer not ção de modeládo . Constitue uma sugestão a.penas tem surge uma construção feliz . :A gora mesmo, o Rio de Ja• neiro acaba de enriquecer-se com a -nova sede do Banco :Boavista, criação de Oscar Niemeyer. O arquiteto er– gueu ali ao lado da Candelá• ria urna de suas obras mais bem concebidas. • A vitória sobre o espaço, o rigorismo funcional se casam a t::m espon taneismo própriamente arauitetônico admirável. paredes forradas de. madeira solicita o painel do mesmo material. Este empresta às tintas uma rara · nobreza. A tela. além de frágil é mais sujeita à ação ·do tempo, à umidade, às distensões e des– gastes que a maderra, sobre• tudo · compensada ou prepara, da. · Enfim, a composição lá está, e o que cumpre agora é conservá-la. Trata-se, sem dúvida alguma de uma tias realizações mais puiantes da arte brasileira de todos os tempos. - · - MARIO PEDROSA terra nú~·. Reve!tiram-~~ de tica õe palmeiras, numa pe ll:ma pav1mentaçao art1f1clal, - feita indiferença i/, parênci uma espécie de soalho, de .formal. . As cores na obed tacos de madeira enverniza• cem à realidade convenci da, ou pedra talhada. · E' o nal. Acentuando as funçõ chão rolido já de um . tem• meramenté cenográficas, plo católico. Sobre e~s? na- colunas se compõem de ped virne:,to, a!'mni,-se o a 1 hr ços superpostos, indican com os seus degraus hierar• que ali" foram colocadas pa (Copyright E. S..J. com exclusividade para a FOLHA DO NORTE, neste Estado) Câ ndido Portinari foi cha– mado a decorar uma de suas paredes interiores . Deram– l he o tema: A primeira mis– sa no Brasil. E' como se vê 'tema ri-gorosamen:e históri- --xxxx-- co, -e já com tradição na nos- A versão de •Vitor Meirel– sa pintura. E' pena que o les . é nítidamente naturalista, p1ntor não tenha sido .chama• subordinada à suposta reali• d.o a trabalha r diretamente da.de histórica, a detalhes pi• sotR·e a parede . Teve assim - torescos -da natureza, com ín· ae recorrer a um suporte -in- dias espantados em volta, dependente, pois realizou a macacos, etc. encomenda em Montevidéu . Em Portinari, essa suposta Também não lhe foi dacjo realidade histórica não exis– trabalhar sobre painel de ma- te. Tampouco preocupa-se ct.eira para ser em seguida ele com as descrições da car– encalx'ldo à própria constru - ta de P ero Vaz, ou com o pi• deSpojamento de que se pode chamar a natureza, libertou-o também de outràs preocupa– ções secundárias, como de côr local; luz natural ou am• biente, etc . Tendo jog1ado forà to.do esse lastro de pseudos pro– blemas pictóricos, o artista concenttou-se no ato mesmo 'da missa. Toda a àtenção. convergiu para as . persona• gens q{¼e participavam do sagrado ritual. O local em que es.t~• é celebrado ficou por isso mesmo perfeltamen• te delimitado como · se· fôsse palco, com , sua luz própria, artificial ·.e distribt:ida pelo soberano arbítrio do ai:tista. Daí não- haver um sistema só de iluminação nem sua so• lução se fazer úniformemen• i&; de acordo com as regras traaicipnais. ç'io. A madeka presta-se ad- toresco intrínseco à cena, pai- Esse por assim dizer arti• miràvelmcnte à pintura e tl'm sagens e personagens colori- f.icialismo de iluminação já sobre a tela a vantar<~rr, rie das,.mataria tropical densa, sel- dá ao conjunto u.m caráter mu.lto •naior solidez. O · pr6- vagens, nús , ou semi-nús, de cen.ográfiÓo, de .teatro. Quer prio edifício com suas lindas cocares e p:mas, bichos. Esse dizer, de representação de al- go inteiramente separado c!o meio natural ambiente . E a primeira missa não pra, do ponto de vista cultural, tudo o que podia haver de mais anti-natural, de mais estra– nho do ·Brasil intacto, selva– gem, fetichista, pagtão da~ queles dias ? A missa de Portinarl é um ato de conquista cultural, de plantação de semente na ter– ra virgem. Aquilo tudo vem de fora; •é um enxêrto de ci– vilização cristã em solo pa– gão. Eis porque não há ín– dios, não há árvores, não há morros nem bichos - a parti– cipavem da cerimônia que só estrangeiros, brancos de ou• tros mundos, talvez de outra espécie, estão realizando. A– quela missa· ainda é coisa de brancos . O pinto:· concentrou-se de tal modo sobre o rito sagra– do que suprimiu inclusive a terra, o solo espinhento, inós• pito, bárbaro onde os estran– geiros desembarcaram. Não se vê na tela um palmo de quizados. a montagem do cenário cerimonia . . A fórmula de composiç é a pirâmide, cujo vértice e tá no cálice . Uma gran vertical baixa deste até monge 'da primeira fila. O tras a confirmam. O desenl total está encerrado dent de enorme linha quebra N ~" hR lil:'""º -r 0 .t~~ -" ""· tureza: em comp.?nsação, no painel de :J:-o.-,.L, 'lfl e;_;..,.~; n ão se encontram linhas cur– vas . Algumas destas, sobre· tudo as acessórias (dorsos, pernas, cabeças) a verem-se de perto transformam-se em lados minúsculos de . um po• ligono em · geração. Para des- iu~ ~ra~e~sa i;~da f ª supe cansar das linhas quebradas • ici~ ª e a · a orm~ ~ depara-se apenas com uma pohgo_no imenso que dl~h grande curv;, do perfil re- ?ue .ª grand,e área lummo cortado das montanhas. A rnfenor das ~ombras ~ol?_ sugestão de volume é em to• das dos . grupos d~ perifen da a compo&ição extrêma• A tonalidade ~omma?te é mente sóbria mal dando para amarelo que vibra ate o do tornear 1:emente alguns rado. A luz d~urada esp corpos, como o do grande lha-s: no ambiente, e n soldado ereto, de lança na permite q~e as somb~as mão, a guardar a entrada ~o adensem ale.º ne;ro. E u quadro pelo canto esquerdo, luz talvez simbólica:. a ter :E;sta figm·a, .pelo tratamento e nova recebe o batismo atit1.1de, vem de outros pai· _(Cont. • u.U, pa~.)

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