Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1947

Um acontecimento ao mes– mo tempo literário e editorial é o aparecimento em conjUDto d e todas as obras de ficção do i;r. Graciliano Ramos, quatro ,omances ~ um livro de con– t os (1). Em rigor, seria pre– ferível, porque mais exata, esta classificação: dois romances: Caetés e Angústia; duas nove– las: São Bernardo e Vidas Sê– c.-is; um volume de contos: In– sônia. A distinção não decor• i-e do tamanh-0, nem mesmo da q ualidade dos livros, mas do esplrito de conce~ão e reali– zação. A falta de diferenciac;ão neste sentido é, alJâs, muito comum na literatura brasilei• Ta. na qual a maioria dos li• vros classificados como ro– mances mereceria com mais p ropried&de o titulo de nove– l as. Por coincidência, em nos- 10 caso. dos dois livros do sr. Graciliano Ra.mos que nos pa– r ecem espe<:ificamente roman– ces. um. Anrústta, é a sua obra-– p rima, e uma das realizações m ais important-es e caracterís– .ticas da ficc;iío brasileira, en– o uanto o outro, Caetés, é a sua única obra de todo falhada e inexpressiva. As duas novelas, por sua vez, sio ambas exce– t entes e consideráveis, embo– ra corn alguns defeitos funda.– mentais de idealização e de constT\lção, que serão indica• elos no decorrer dêstes arti– gos, com os quais voltamos pela terceira vez a tratar de um autor especialmente esti– mado e de uma obra caloro– samente admirada por todos os 11eus companheiros" de vida li• t erâria. Nas crônicas anteriores, o meu objetivo f-01 o de interpre– tar o sentido geral da obra do er Graciliano Ramos, procuran do fixar os ~os da persona– lidade do escritor e a proje– ção dela através da arte lite– rá ria. Tinha imagina.do djscu– tJr desta vez a significação polllica da $\..a obra, , com \lma opinião contrária à que se acha estal)elecida. no que me ve:ío impedido peias êir– cunstâncias exteriores, pois não seria leal e correto abrir êsse debate num momento que lhe é pouco oportuno, pres– tando-se a minha atitude a explorações extra-literárias. P rocure-mos. então. outro ter– r eno para êsses comentários, a fim de que não redundem em simples repetição ou varia. ção dos anteriores. ~e terre– no poderá ser o da evolução literária do sr. Gra.ciliano Ra– mos. vista melhor através de uma leitwa de conjunto dl'IS s eus romances e novelas, fi– :rada em cada um dos seus l ivros. Poi_s a verdade é que êste ficci<>nista, limitado, a certo respeito, nas suas visões, jo_i?ando com um ambiente so– cial reduzido e não muit_o vas– tos recursos de revelação ps!• col6gica. conseguiu, no enlan– \ o, faz,er de. cada um dos seus livros uma obra independente, sempre com elementoo parti– c:,ulaN!S e cara~terlsticas prú• t>rias, sem se repetir, sem • - • ~..o-~.,~~ DOMINGO, 29 de junho de 1947 Diretor: PAULO MARANHÃO NUM. 32 JORNAL DE CRÍTICA Visão Geral De Um Ficcionista transmitir nunca a sensação de que wn dêles está prolon• gando o oulro através de as– pectos semelhantes. Isso é um resultado da su.a arte literária, da sua capacidade de utilizar, com o máximo proveito, todos os elementos de observação. Inspiração, imaginação e cul– tura de que· dispõe consciente– mente. A primeira edição de Cae– tés apareceu em 1933: o seu autor, nessa época, era uma figura municipal, tendo vivi– do até a maturidade numa ci– dade do interior de Alagoas. Não se tinha ai a estréia de um rapaz, de um jovem, pois ao publicá-lo iá e1'trara o ro– man-cista na casa dos quaren– ta anos. Essa circunstância ex– plicará, talvez, que, se~o um liVTO f alhado e sem valor, Cae– tés nem sequer tenha deixado ruspeitar o grande escritor que surgiria depois em Sio Ber– nardo, Angústia e Vidas sêeas. Não havia nêle as indecisões, os err~: as perplexidades. os e:tcCeE'soe. JDJ.Stu rados, porém. a certas revelações de talento, Alvaro LINS -- (Exclual.tdade pua a FOLHA I>O MORTE, 1ut1te t:atatlo) que nos Ji,vros de alguns estre– antes nos levam a jogar certo no futuro dêles. Não 1 _ não era êste o caso de Caeléa. Tudo nas suas páginas revelava se– gurança e estabilidade, mas de má qualidade. Um livro ma• ciçamente ruim. A vulgarida– de do a,mbiente do romance - e todo êle se processa atra– vés de coisas reles, pequenas i.nt.rigas e conversinhas de uma cidade do interior - pa– rece ter contaminado a própria arte do romancista, de modo q~ assunto e realização per• manecem no mesmo plano me– dlocrlà,. Logo na primeira pá• gina, na primeira cena, en– contramos a wlgaridade de expressão daquele "que lhe deu dois beijos no cacllac;o", seguida mais adiante de outra. que escolhemos apenas ent.re os po,ssivels e numerosns exemplo& neste sentido: "Que diab~! Se ela me preferiss'! ao marido, não !aZia mau negó– cio. E quando o velhote mor– resse, que aq11ê1e trambolho não podia durar, e'll amarra– va-me a ela, passava a sócio da firma e engendrava filhos muito bonítos". Estilo correto, o elo sr. Graciliano Ramos, des– de êste primeiro romance, mas ainda sem a justeza, o vi~or e a expre&Sividade que lhe são cara.cteristicas. O ritmo das íTases ainda se apresen– tava sem regularidade, às ve– zes saltitante, às vêzes tele– gráfioo, como se estivesse comprimido: ,. Acharam-me apático e murcho, D. Maria José perguntou, solicita. se as comidas me desagradavam. Maça.da. & comidas eram óti. mas, respondi, mas o est.óma– go e a cabeça não me iam bem. O dr. Liberato me indicou um remédio. Agradeci e reeolhi- me". Por sua v-ez, o enrêdo de - .. ~lés é comum e destituído de inter&se. Torna-se sin1- plesmente monótona aquela preteMão de J oão Valério, aquêle projeto de conquista amorosa, que nem se realiza, nem gera dra.maticidade ro– manesca. Arrastada é a ação, arrasta.doo os diálogos. Além disso, o processo do romance é de caráter fotográfico, com mais pitoresco do que d,rama. ticidade; os personagens são tipoo convencionais. que não se individualizam nem pelos seus atos nem pel<lS seus ca– racteres. Costuma-se dizer que êste primeiro romance do sr. Gnciliano Ramos foi muito infiuenciado por Eça de Que!• roz.. Ora, a não ser em algu– m.as pilhérias, e na pãgina fi. nal que realmente parece ter sid~ inspira.da nas últimas pá– ginas de A Ilustre Casa de Ra- 111.ires, não vejo nilid-amente as linhas dessa ligação. Pare– ce-me que mais verdadeiro foi o sr. João Gaspar Simões qualldo o aproximou de C11- milo Ca.!.-telo-Branco, natural– mente de um Camilo Castelo- Poema De Rainer Maria Rilke • T{Jj)O O QUE PROCUR.~S CO NSTITUE UMA TENTAÇÃO, E O QUE ENCONTRAS TF. PRENDE_A IMAGENS E GEST•.JS. EU TODAVIA TE COMPREENDO COMO A TERRA PODE COMPREENDER-TE. O MEU AMADiJRECER ~1:ADURO TORN_A.RA O TEU REINO DE TI NÃO QUERO VAT.DADES PARA REVELAR-TE. EU SEI QUE O 'fE"MPO NÃO É IGUAL A TI. DE TI NÃO PEDIREI MILAGRES; QTTERO QUE DÊS RAZ~O ÀS TUAS LEIS QT.JE MAIS EVIDENTES SÃO DE GERAÇÃO A GERAÇAO. (O LIVRO DAS BOBAS) -. TRADUÇÃO DE PATJLO PLINIO ABREU. Branoo despejado do arcais– mo e da linguagem artificio– sa. Por que não me agradou nada êste romanc.e Cutés? Não quero ser categórico na minha opinião, e tomo a ini– ciativa de S'Ugerir ao leitor que talvez ela tenha decorrido da. circunst.ânc:la de só agora. o haver lido. depois de conhe– cer toda a capacidade e toda a arte do autar de uma obn como Ang,isf.b. Apenas um ano depois de Ca.etés, em 1934, aparecia São Bernardo; e dir-se-ia que era o livro de um n-0vo eecritor, tal a di!erença entre um e outro, quanto ao valor lite- r~rio e à significação huma– na. A não ser que o p rimeiro tenha sido escrito muitos anos antes do ap.arecimento. a evo– lução tão tund &rnen.te mar– cada no segundo, num insig– niificante espaç,o de tempo, é lnexJ>licável. é um dos muitos misté-rios• da criação art.fstica. [sto seria assunto. aliãs, pro-a uma página de depoimento ou interpretação a ser escrita por alguns dos companheiros que viveram em intimidade com o sr. Graciliano Ramos na sua fase alaroana, como a sra. Ra– chel de Queiroz ou oo srs. Jo~ Lials do Rego. Aurelio Buar• que de Hol anda. Valdemar Cav:i-lc.anti e Raul Lima. Não é peJ.o ambiente que o plano de concepção e de cons– trução do romancista se am• olia. engrandecido. em Sio Bernardo. O ambiente de Ct.e– tés é. uma pequena cidade do interior: o de São Bernardo ainda é menor: uma fazenda. Os persona1'~ns também não são nem mais numerosos. netn mais significativos socialmen– te. Pelo contrário: o mundo ro– manesco é mal.s reduzido e concentrado n.o se'gundo livro, o que lhe dá um carãter mar– cante e seguríssimo de novela bem estruturada. ~ :J,.zenda São Bernardo t~•se num autêntico mierooosmo. As figuras apresentam h1lmani– dade. paixões. drama!l. m~– rias, anseios de felicidade e quedas na irremediãvel des– graça. O sr. Gracilia.no Ra – mos, ao criar e movimentar personagens como Paulo Ho– nóri,o e Madalena, parece t~r encontrado definitivamente o seu plano de ficcionista: o do romance psicológico. -A sua es– pecialidade não é a invenção de aconteeimentos. nem mes– mo o aproveíta.mento em ex– tensão. com objetivos dramáti– cos, de acontecimentos por– ventura observados ou vivi– dos diretamente. Neste senti– do, o mundo romanesco do sr. Graciliano Ramos é pobre, li– mitado. deficiente. O gue trammite vitalidade e beleza a,rtisiica aos seus romances n ão é o movimento exterior, mas a existência interior dos pe-rsonagens. Os acontecimen. liOS s6 têm signilic-ac;ão pelos seus reflexos nas almas, nos caracteres. no, pensamPnto::;. ( Continúa na 2.• pág.) ----------- ___ , ______________________ -------------------------------- - --- ----- A MIGOS mortos. Pen– so nele.s com freque.n– cia maior, à medida l{Ue se evapora em mim a iembrança de seus ges• ios e palavras. A imagem assim desanexada de cir– cunstancias já não sofre as oscilações d,o objeto vivo, que por vezc,; nos recusa a sua solidariedade, e em outras somos nós que voluntaria– mente afastamos do nosso campo emotivo. De tanios encontros, e o n f i d ências, planos, carta.s. incompreen– sões passageiras, ficou um indestrutivel fantasma. que é a veYdadeira essência do amigo, fixa em meio à li– quefação incessante de nós me,;mos e das formas que nos rodeiam. Esse faniasm11 no,; h abita sem oprimir-nos, E ' brando e não sofre, co• mo não nos fu sofrer. Se J>Or um artificio do coração busca.mos transferi-lo para o interior de nova;, amiza• des, que atamos já sem as disponibilidades afetivas da juventude e com um frio wculo de Tccuper11.c;io mo• :ral, temos logo da reconhe– cer que a op•ração é ilu– sória: êsse fantasma é uni– co, privativo de um tempo abolido, gue êle conserYa sem reproduzir. E à força de se ide.ntifica.r conosco. ,. e r e o s tr!'-11sforma-se afinal em . nos mesmos, passando as- sim a viver de uma efetiva existência. ao passo que nós, em virtude mesmo dessa in- - - Carlos Drummond de Andrade -– corporação, morremos de sua morte e de seu esque- (Exclusividade para a FOLHA DO NORTE neste Estado) cimento na atualidade. ... .. Numa grande cidade, on– de passou a residir, um ho– mem da província guarda consigo a recordação do amigo morto h á muitos anos e de ~e ninguem nunca ou– viu falar, nesse :ne.io no-.o. As ruas por onde pa!Ga não lhe evotam andar.ças com o amigo; as casas que fre– quenta sio de todo indife– rentes à ~essoa do morto. O homem não descc-brirá na biblioteca pública nenhum vestígio dc-1\a vida aue lhe é tão cara; :qem nas igrejas, nem Dos carfórios. A lem– brança do am;_go existe ape– nas dentro desse novo habi– tante d a cidade\ que gosta.ria de cc-mun icá-la \a outros ha– bitantes, mas o~ não oo eD• contr" suficienfE'.\neDte inte– ressad01 n.ue conhecimento, ou não consegue sugerir-lhes de maneira hábil o traço particular da personalidade do mo-rio, ou se vê coibido d~ fazê-lo por um movimen– to imprevisto de pudor, ou por último. refletindo me– lhor. considera inutil essa tentativa de comunhão em tôrno de algo estritamente pessoal e indelegável - e cala-se. Ele próprio irá re– CCllbendo num v ã o da me– mória a figura cada dia mais pálida do outro, à maneira de um livro que foi cair Do fundo da estante. e aí se de.i– xa esque.cer, até que a mão, por acaso, o vai descobrir: e como DC6Se livro as idéias adcrmecidas acordam brus– camente, a imagem rele.qaaa da amigo se impõe de súbi– to, à primeira provocação de um agr'11e mair. misJerioso ainda do que o acaso. Ape• nas, essa imagem. apurada no tempo, ficou reduzida aos seu.; traços essenciais, que daí por diante fcz-necem ao homem a idealização de um amigo, não s6 daque.le que m o r r e u eomo de um amigo perfeito, incorrupti– vel, abstrato. suma das es– peculações filosóficas sôbre a amizade. Já então êle não cuidará de fazer os outros participarem do seu Seflredo. Admitirá que ~egredos iguais se cultivam na grande cida– de. e, mesmo, que uma ci– dade, exclusão feita de pré– dios, veículos. objetos e ou– tros símbolos imediaJos, não é mais que a conjugação de inumeros segredos dessa or• dem ideniicos e inco:nunieá– veis entre. si, e pressentidos somente por poesia ou amor, que é poesia sem nececuida– de de veno. • • • Mas para que vivam as– sim, libertados de si mesmos ._ de nossa intermitência. é necc.ssário que tenham mor– rido? terá pois uma criação da morte. do tempo esfari– nhado, amizade perfeita ? Nossos amigos só se reali– zam plenamente quando já nem êles nem nós temo& po– der de nos desunirmc;; ? Em nossa vida sentimental ape– nas acumulamos mercadorias • • • preo.osas, que so nos sera dado u.sufruir em estado de nostalgia? • • • CC\lltudo, essa inteligência dos mo.rtos. a que a.tingimos me.diante o desgaste de nos– sa própria vida. e neQi de leve se equipara a~ conheci– mento cientifico do pesqui– sador, poir. o transcende - essa inteltgência não nos afa sta do mundo vivo e dia– leticamente agitado, nem é um.a luz funerária. que nos dê o ar lívido de mortos an• tecipados. E' também inte– ligência da vida. Interações 'iecretas e cal)richosas, de tn1e não suspeitávamos. en– fim se desvendam a nor,-;os olhos. e ninguem poderá afirmar que a -.erificaçã,o desse comércio constitua coi– sa triste em si, ou que. o co– nhecimento em geral seja alga de especificamente do– lo.rosc, quando é antes li– bertador e. como tal, ponto de. alegria. • • • Voltam assim à -.ida civil, e não por meio da elegia. os amigos mortos. Sublime de– rivação da amizade é essa. que se. reali:aa tacilamenie, de nos conduzir à compreen– tião de nós mesmos, de nos articular com a nossa pró– pria vida. que de outro mo– do se escoaria talvez: sem re– missão; de fazer com que ·a re,cuperemos, depois de in– teiramente perdida. Nossos amigos morte.-; verdadeira– mente- nos a companham: e como aboliram o susto e a friagem dos contactos entre vivo e morto, mais de uma vez nos proYocam o mo que outros apeiias saberiam tiraz de um cômico exterior. Riem em nós, vibram no ar D\8!1: puro, e sobem. a montanlta. e estiram-se na praia, e afa. gam. Ao nosso lado ninguem percebe isi;:o. 1l cidade e fei– ta de segredos. •

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