Folha do Norte: Suplemento, Arte, Literatura - 1947

Robinson aproximou-se cau– telosamente. Percebia.se (lue era um bomeJn disposto a ae– fende? sua ilha deserta. -Naturalmente o sr. veio aqui p ar a. entrevistar-me. ' Quer conhecer minhas o.pi – niões sobre a organização ideal do mundo, a 'maneira de eli– minar a ferocidade nos seres humanos, o problema da dis• trlbulçã-0 de tudo a todos, e outras utopias. Mas eu sou um homem sem opiniões. Tenho apenas meu machado e mi– nha ~bana. Entende? -Não, velho Robinson. Não vim -perguntar.lhe nenhuma dessas coisas. Apenas, discu– tem à minha roda lite1-a.t'\ll'll Infantil. e eu me lembrei de procwâ-lo, a você persona– gem típica dos livros infantis, para ouvi-lo discorrer sobre matéria tão complexa. -Não sou personagem de histórias infantis. Minha bis. tória não foi escrita para cri– ança.~. -Precisamente por isso es– c olhi você, meu caro. Como se explica o fato de um livro composto para adultos atingir a :.i:ona. difícil das crianças e pa.."Sar a ser consiclerado um Jivro feito pa.ra elru,, e até mais compreendido por elas do que por gente grande? Robinson co~ou a barba. de uma exuberância vegetal. Mostrava-se embaraçado. mas estaria antes envaidecido. -Então. no Brasil tam. b . ') em . ... -Também no Brasn. pois não. A prineínio, nas velhas e ingênuas séries de quadros coloridos do "Tico-Tico", a sua aventura foi contada às crianças brasileiras. (Chorei minha lágrima. na, semana em nue você deixou a ilha). De– pois vieram outras adaptações e resumos, antecipando a téc– nica moderna de condensação. Por ultimo, você foi apresen• tado aos nossos garotos pelo escritor Monteiro Lobato, um dos homens que mais fizeram pelas eria.nça!! brasileiras con- 1.a~o-lhes histórias entre fan- . tãsticas e rea.listas, em que ibes ensinava de maneira. pi– toresca a c.iêneia, a história, a geografia, os fenômenos ,da natureza e o ceticismo para · com. os governos. -Corta.ram muito nas mi- ' nhas peripécias? l -Um bocado. Mas el'a pre– ciso, · e todo eseritor já está. habituado a essa operação. O essencial era que a persona– gem ficasse. E a persona'ge,m está viva. Fizeram o mesmo com o Quixote .. . • Domingo, 17 de agosto de 1947 Diretor:· PAULO MA.RANBAO NUM. 39 - OPINIOES DE ROBINSON ante (talve:.i: mais comercian– te do que honra.do ), e sobretu– fazendo uma cabana fortifica– do um espírito prático. Minha longa permanencia na ilha, que cultivei e colonizei, não é uma aventura romântica. Não perdi meu tempo construindo uma tôrre, JDaS aproveitei-o da; e não escrevi versos à ma– neira de jovens poetas puros. Em matéria de escrita. limi– tava-me a ,lar talhos na ma– deira, para indicar os dias e controlar a passagem do ten1- po. Enfim, minha vida po,le ser tida como exemplo de vi– da J)rá.tica, laboriosa e cons– trutiva: nela se funtlem ca– pacidade inventiva, força de vontade e poder de a-daptação, -Já sei, prezado Robitls'on, e desculpe se lembrei à-toa o nome de um ser tá.o diferente oomo o Quixote. O certo é que os meninos gostam de vo- Carlos Drumn1ond de ANDRADE -~ xcl11,1sivid-ade d a FOLHA DO J;>lORTE, neste Estado) cê, homem de vista curta e segura. (isto não é xingamen– to) como do fidalgo manche– go, que era a. própria imagi– nação desenfreada. Meninos gos tam de tudo, e o apetite infantil no tocante a hist órias e caracteres, vai ao infinito. . .-Além do meu ca~o. que é que eles lêem ultimamente? -Tudo. E muitos lêem Ro– binson sem o saberem. Porque você tem mil nomes. fique ci– ente disto. Os escritores e de– senhistas norte - a.merica.n0,s não pecam em geral por ex. cesso de espírito criador, e muitas vezes, com feições e rótuloo diversos, faum de vo– cê on de outras personagens classicas o objeto de suas his– tórias a.parentemente novas. - Essas histórias, como ta.ntas outras merca-dorias padroniza. das, despacham-se para o mtmdo inteiro, e aparecem si– multaneamente nos jornais e revistas dos dois hemisférios. Sua receita' de vível' numa ilha deserta vem sendo muito explorada, • -Recebo as ''Seleções" e ouço o aviso aos na.vegantes. Hoje em dia isso de ilha de– serta é conversa fiada. -Claro, velho Robinson. e as crianças também o sabem. As crianças envelheceram ter- rivelmente nos ultimes tem– pos. O · cinema lhes trouxe uma soma brutal de· conheci– mentos. O rádio também. Já nã.o falo de crianças dos paí– ses onde se desenvolvem ope- rações militares e há-os ~empre por to<la parte - essas aprenderam demais. Refil'o-me às crianças de pàises não in– vadidos nem bomba.rdell\dOs, à,s Ct'ianças mais feli:.i:es e prote. gidas. Amadureceram .muito. Bá.ftllesmo quem receie que os contos maravilhosos já não se– du:.i:am os meninos mais ten– ros, a menos que êsses contos também se renovem e, por exemplo, exiba.m moraliparle mais direta e çortante. Na opinião dessas pessoas,. as fá– bulas estão desmoralizadas. A figura. do lobo não interes~-i: um fascista impre5lliona muito mais. E as fadas teria.m per. dido o prestígio. depois q~e a Grande Guerra n." 2 apresen– tou, em cachos. os paracJue– distas. -A.final, o sr. está entre– vistando ou sendo entr<??i.,~a– do? estranhou Robinson. -----------------------------------·---,------- ANTOLOGIA O SAC R I FICIO D A .A LJ RORA _:tt,_3::, 2 · Vim aqui pa– ra petu»- lllâc, que me ajude a compreender o mistério da lei– tura - ou um aspecto dele\o As crianças lêem histórias pa.. . ra gente grande. Os homemt lêem conto ae Andersen ou Perrault. U:m conto como Q "0 príncipe feliz", de Osca Wilde, não se sabe se foi com,.. post-0 para adultos ou peque.– nos - tod-0s o acham delicio– so. Que é, afinal, !i~tU1'1 infantil? -Meu fil~o. responde Ro'.' binson gravemente, depois d~ um m.i_nuto de reflexão. O pro: blenµl é estranho a mínhas C!)gitaçóes habituais. mas é posslvel examiná-lo à Jui da, natore:.i:a hum.-ina. A literatura iJI!'antiJ é talvez- uma inven.:. ção de livreiros. Quem sabe? -Mas os especialistas... -Deixe em paz os especia.- listas. Não é fora da hli;tória do comél'cio ou da sociedáile que um gósto ou uma tendência sejam impostos pel0s produtor. O {lso da. gra.vata nos paises , ocidentais talve:.i: não tenha outra e;,.-plicação senão a de que foi estabeleciilo pelos fa.. bl'icantes de gravatas. Litcra.– t1Jra. é u1na só e não pa.r~e ra.. zoável que se divida em sec– ções correspondentes às fases de crescimento físico e men. tal de) homem. -Contudo, arrisquei. certa manPJra de contar entre in• - ' ;:eunl\' e confiada, a omissão volunt!oria de certos traç09 pretensiosos ou fugitivos ... -Dirige-se de- preferênci:1 a~ P'!_bli~o, _ao p~blico ,infan◄ bl, na.o e? Mas essa maneira não basta para caracterizai uma nova forma de literatura, nem mt'Smo um novo genero. Dentro da "literatura adulta" , ' . se e qu:e vocês a chamam as- sim. cabem todas as maneiras formas e gêneros. E a redu~ ção micr-.oscópica ~le um gêne- Um dia a A-urora cheqoU-S$ A's vêzes me adormecia No meu quer.to de marfim Para acordar: outro dia ' ro é a inda o :mesmo gênero. Jnfantil, via (]e ·re~ra, ê o · au– tor da história, nã.o a, l1istó– ria em si. Com-0 certos médi– cos pediatras que indo auseuJ. tar o doentinli'o se sentem no dever de usar para com este uma linguagem infaritil - e tornam.:.~e mortalmente ridí- · culos aos olhos da criança. O qu~ há. de gl'avidade e consci– ência das coisas, no espírito infantil, escapa geralmente a êsses escritores especializados em livros para crianças. Co– mo se a criança f01Sse um ser à, pa.rte. que se transfonnasse viscer-àJmente ao !)reseer. ,..:.t • Ao mea quàrto de marfi~ E com seu riso mais doce D~itou·se junto de mim. Beijei-lhe a bôca orvalhada E a carne tímida e e.xangue: A carne não tinha sangue A bôca t;abia a nada. Apaixonei-me da Aurora No meu quc:rto de marfim Todo dia à mesma hora Amava-a só para mim Palavras que me dizia Transfiguravam-se em nevei Era-lhe o pêso tão leve Era-lhe a mão ião macia. ,.,,. Com a Aurora longe de mim. Meu desespero covarde · 'Levava-me dia afora Andando em busca da Auror~ , Sem ver Manhã. sem ver Tarde. Hoje, ai de mim! de cansado (Há dias que até da vida ... ) Durmo com a Noite, ausentado Da minha Aurora esquecida. E' que apesar ~e sombria· Prefiro essa grande louca A' Aurora. que além de pouca E' fria, meu Deus. é fria, VINICIUS DE MORAES E o homem positivo conti◄ nuou: -Nã-0 há escritores para · homens e- escritores para me– ninos, co-mo não os há para velhos ou para muJheres. ~á somente bons e maus escrito• -Esse cavalheiro é diferen• te, interrompeu Robinson, agas. t.ado. Nada temos de comum. Trata-se de um sonhador, um lunático, ao p'aSSO que eu sem• j>re ftÍi um honrado comerei- /êont.inua na 2.• pag.) --------------------------:----------.::.._ ____ _:_:.:__ - • INTRODUCAO DRAMATURG·IA · l·NDIGENA • -" (Continuaçã;> ,lo numero anterior) Mas. existiria mesmo uma mitologia indige.na, ao Nunes PERF.IRA a- tempo em que se iniciou a cristiani:.i:ação do Brasil? Ele entôa. só:.i:ínho, primeiramente, escreviamos nós. Evidentemente. um canto: acompa.nham-no, em seguida, pessoas da sua Seus povoadores e seus missionários não a julgaram. familia. Por fim. toda a horda canta, num côro que, · ne- porém, digna de coleção e de estudos. cessariamente. tem de ser ouv,ido por aquelas divin.dades Essa mitologia estava interligada às atividades mate- - p,or Nanderikéjy ou por nossa Mãe Nandesy ou por riais e espirituais de, Indio, como acima refer-imos. Tupã. Dai os aspeclos da sua dramatização. Já na festa da puberdade, entre ,os Tukuna @lo Soli• Desde a · primeira idade. ouvindo as cantigas de ninas mões, na Amazonas. porque a assistimos, também, como (cantigas de macurú), ia a alma do Indio se impregnando Curt Nimuendajú e Fr. Fidélis, a Moça (uaérequy), ao da poesia. da bele?.a da substância religiosa do Mito. som das uaricanas e de cutros instrumentos de percus- E entregue ao trabalho te-.ria essa alma indigena de são, ao ser despojada da cabel~íra. a Moca está ali, sob a 'dirigir os movimentos do corpo que a 'continha em obedi- influência dos mitos da tribo, dos espíritos da floresta e tncia aos seus totens e aos seus tabús, bem como aos mitos das águas. de todos os seres de um mundo mâravilhoso; que lhes estavam 1·elacionados. representados pelas máscaras do Vento, _da Chuva. do Sol, Muitos desses mitos nasciam de um sonho ou de uma da Lua e dos Macacos, os luxuriosos toés; exibindo dis- fantasia individual. forme-s phalus. co1no. nas festas bãquicas. do mundo anti- O criador de mitos da tribo, porém, era o Pagé e. iam- go, os sátiros e os fP.unos. bém. o narrador e o inventor de contos e lendas. As próprias bebidas, nessas solenidades. sofrem a in- 1!,ó o Pagé. porém. tinha o encargo de, por ocasião de fl~ê~cia. ~o Mito, :te!ldo sido v!rdadeira provocação a dos iniciar-se uma plantação ou uma colheita. realizar deter- m1ss1onar10s. destruindo o vasilhame que as contin}?a, e minadas práticas e expressivos rilos, pois só ele conhecia derramando-as, para combater a embriaguez e a antropo.– os fenomenos· naturais e os mitos que dele haviam na~i-. fagia, di:.i:em. do· Em nossa viagem à Serra do Sol e a outros pontos do Nas cerimônias de batismo, como as descreveu Curt !ferritório. do Rio Branco. verificamos que, nos côcho.s de Nimuendajú, observando-as entre os Apapacu:va-guaraní. madeira, destinados ao vinho dos indios Ingarikó, Mukuxi · o.u nas fes!a~ ?ª puberdade, como as de-screveu_ o c~p~hi- e Wapischana. apareciam a cabeca de uma lagartixa, ali . nhe- F'_ ~~mbora· sem h e s ~ etrar iíiq uxett. · ·--esculpida, e desenhos traçados com intenção mítica e ira- . · 'l b ol ~mo, 0 mi to atinge a sua l .,nit •tle de t 101 a dicion~l. pois a lagartixa está relacionada com as provas com a alma do Indio e a nat ureza q e o cerca éspor:bvas, com as lutas, as corridas e as danças que se se- Na imposicão de no:me entre os Apapacuva-,.uaran1, uem. após copiosas libações dos vinhos .. . l;)llc:ava aquele eln gr.to . "o Pagé tinha de desenvolvu Acaso esses vinhos não transfundiriam ao Indio aquele • a genio do principio de individualização", representado por polo, no mundo da arte grega e nesse mesmo mundo, "a legria mistica de Dionisyos que abria camiuho para o fwi. - do mais secreto das coisas", segundo· eVlOcou Nietzsche ao estudar a origen1. da Tragédiá? Acaso esses vinhos não fundiriam numa obra como á música. o canto, a dança, esses dÕis mundos da Arte? Ah~ música indígena! O Indio a arrancava de instrumentos, de formas sim– ples ~ material tomado à nattu'eia a,mbiente, - de taquá• ras, de ca, oços de frutos, de carapaças de quelônios, de crânios e tíbias de animais, e. comp uma iniencão l:Íeraica ou mis.tica, mais ampla, dos ossos do inimigo ábatido em guerra. Uma •flauta de Pan. um clarinete de· taquára. de ai• guns palmos. ou outro, de paxiuba, de cerca de dois me. tros; um casca de jabotí. cujo plâstron, num dos rebordos se revestira de breu.'para. atritando-o com a mão direita podere':.11 imitar algo que se diria a vo:.i: desse animal: u~ t~mbor1m, que se cobrira. de um e outro lado, · cem a pele de 1;1m veado campeiro ou de um gai'.o maracajá: um ma– raca emp!umad?• feito do fruto de cuieira (cuc-urbitacea): um:1 ocar1na. fe1!a de um caroço polido de tucuman. esses os instrumentos do Indio. Com eles imitava o Indio o canto ou o grito típico deste passaro ou daquela ave; o silvo deste quadrupede ou daquele réptil; mas é verdade que, com ele.s. tawbém. exprimia as melodiçts do seu mundo interior. que dava e_x– prei;são. à sua alegria. à sua :tristeza, ao seu ódio e ao seu amor,. ao amor e ao ódio das suas divindades . Temos de admitir, por isso. que para se cempreender essa música. os. leit-motiv que nela apa-recem, as melodias que a caracteri:;:;am, é necessário uma identificàcão total com a alma do Indio, com o seu m \1ndo interior ·e cem a natureza que o cerca. Um Hornbost<!l pôde de.<;cl'ever o maiel'ial de que são feitos os instrumentos indigenas da r-egião do Ric• !3ranco e pôde ig\•<'171'1°'.llte anali,:;i_r as características de música que com eles se conseguira. -"' -- -'~a na 3ª . pag .l

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