CELINA, Lindanor. Breve sempre. Belém, PA: Governo do Estado do Pará, 1973. 167 p. ISBN (broch.).

cúmplice, querem apadrinhar distraçãozinha para o filho na comprida viagem, namorinho que o divirta até Paris, são do bloco de Amsterdam, a quem tudo é permitido? Mas têm um ar tão família, tão moral conservadora - isso a grávida também tinha, a descascadora de batatas, entre– tanto. . . As gentes, as pessoas. Porém ela gosta de gente e, com todo o seu pesar, não deixa de interessar-se pelas reações alheias, quem sabe isto não me salvará de mim mesma, meus demônios-tormentos? Quando a mulher gorda e vermelha (que dentes!, naquela idade, dentes de quem foi criada a puro creme de leite, dentadura de vinte anos, o rosto cinqüenta? sessen– ta?) lhe estendeu, num gesto que ordenava, imperioso, em tirânica simpatia, um pão com salsicha e forçou-a a aceitar, bem que lhe deu uma gana de dizer-lhe tudo, chamá-la aqui para este cantinho, junto da janela, pai e filho para lá, isolarem-se as duas, apoiar a cabeça no ombro roliço, lembrava Betsabete? - quem sabe deixar cair uma lágrima no estampado marrom: "Olhe, minha senhora, me desculpe, mas sou tão infeliz que a senhora nem imagina, não posso aceitar esta sua salsicha, me dê antes um pouco de sua ajuda, me ouça, me console um bocadinho nesta viagem sem fim, que estou só e miserável, venho de dizer adeus a um homem que não me quis, um padre." Aí a mulher arregalaria um olho, ou não?, ou trataria de dissimular o espanto, poder saborear bem essa história, "mas que coisa, hein, com essa carinha aí, só lendo, ,olhos modestos, e se botou nuazinha perante o padre, salomé de calcinha e sutiã (detalhe abominável)." Não, sua estranha, este gosto não lhe dou, prefiro o san– duíche, "obrigada, minha senhora". "Sim, sim, tente comer, filha (que maternal!), a viagem é o dia todo, chegará a Paris muito abatida", abatida estou eu, senhora dona, por detrás destes óculos escuros, na casca, que não prego olho há duas noites, a bom chorar e adorar aquele homem de pedra. Laura, me d:z, mana, qual a diferença entre nós duas? Teu hindu e Peter, a mesma crueza. Peter, outros aparatos, o atenuante da doença, a dor perene nas tripas, com raiva insiste na palavra "tripas" - ele é um saco de tripas podres, macerado por uma cólica eterna. Mas ai, minha dona de vestido marrom, dentadura de reclame, quem foi que disse que o ridículo mata o amor?, quem o ignorante que afirmou tal burrice? Peter disfar- .. 144

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